Escrituras e Tradição Cristã

Orígenes
Deve-se ousar dizer que, de todas as Escrituras, os Evangelhos são as primícias e que, entre os Evangelhos, as primícias são aquele de João, do qual ninguém pode apreender o sentido se não deitou-se sobre o peito de Jesus e não recebeu de Jesus, Maria por mãe. E. para ser um outro João, é preciso se tornar tal que, assim como João, se entenda designar por Jesus como sendo Jesus ele mesmo. Pois, segundo aqueles que têm dela uma opinião sã, Maria não tem outro filho senão Jesus; logo quando Jesus diz a sua mãe: “Eis teu filho” e não: “Eis, este homem é também teu filho”, é como se lhe dissesse: “Eis Jesus que destes à luz”. Com efeito, qualquer um que tenha chegado à perfeição “não vive mais, mas o Cristo vive nele” e, posto que o Cristo vive nele, é dito dele à Maria: “Eis teu filho”. o Cristo.

Olivier Clément
Já há na Escritura um aspecto de encarnação. A Escritura incorpora o Verbo e a Encarnação do Verbo acaba de transformar em Eucaristia a audição ou a leitura da Palavra.

Porque o verdadeiro pensamento cristão é eucarístico. A eucaristia da inteligência — é preciso também amar Deus de toda sua inteligência — nos abre ao encontro nupcial do sacramento. E o sacramento por sua vez ilumina a inteligência.

É dito que bebemos o sangue do Cristo não somente quando o recebemos segundo o rito dos mistérios, mas também quando recebemos suas palavras onde reside a avida, como ele o diz dele mesmo: «As palavras que disse são espírito e vida». (Orígenes)

Em verdade, antes de Jesus, a Escritura era de água, mas depois de Jesus, ela se tornou para nós este vinho no qual ele se transformou. (Orígenes)

A escritura constitui assim o Corpo do Verbo. A significação última do Primeiro Testamento se desvela em Cristo pelo símbolo e a “tipologia” que desvenda nos personagens e eventos da Bíblia “tipos”, quer dizer figuras do Verbo encarnado e de sua ação salvadora. O lugar do simbolismo cristão é a Encarnação, a união do Divino e do humano na pessoa do Verbo. Ora a Bíblia inteira é um momento da Encarnação.

Eis como tu deves compreender as Escrituras: como o corpo único e perfeito do Verbo. (Orígenes).

Nos dois anjos (aparecidos no túmulo do Cristo) podemos reconhecer os dois Testamentos… Eles estão reunidos aí onde se encontra o corpo do Senhor, porque, em anunciando de maneira convergente que o Senhor encarnou, morreu, ressuscitou, os dois Testamentos estão de alguma maneira assentados, o Antigo a sua cabeça e o Novo a seus pés. É porque também os dois querubins que protegem o propiciatório se olhando um o outro…. Querubim, com efeito, quer dizer plenitude de conhecimento. E que significam dois querubins senão os dois testamentos? Que figura o propiciatório senão o Senhor encarnado, do qual João diz que se fez propiciação para nossos pecados? Quando o Antigo Testamento mostra que deve se realizar o que o Novo)) proclama cumprido no Senhor, eles se olham um o outro como os querubins, em virando seu olhar para o propiciatório, porque, vendo posto entre eles o Senhor encarnado, eles (…) recontam de maneira concordante o mistério de seu desígnio de amor. (Gregório o Grande)

Jacob Boehme
Do mesmo modo, convém a todos que pretendem falar sobre os mistérios Divinos ou mesmo ensiná-los, que possuam o Espírito de Deus, e que saibam à luz Divina o que expressar como verdade; nunca se deve extrair o ensinamento de sua própria razão, nem se apoiar meramente na letra morta, sem o conhecimento Divino, e levantar as Escrituras pelos cabelos, como costuma fazer a razão. Muitos erros surgem daí, pois os homens têm buscado o conhecimento Divino na inteligência e perspicácia próprias, passando da verdade de Deus para a razão pessoal, considerando a encarnação de Cristo como algo estranha e remota, enquanto todos devemos nascer novamente de Deus, nesta encarnação, se pretendemos escapar da cólera da natureza eterna.

Raimon Panikkar
As Escrituras cristãs são, assim penso, totalmente acidentais em relação à revelação cristã. João ele mesmo o sugere: “se se quisesse relatar tudo que se passou, a terra inteira não poderia conter os livros que necessitariam escrever (Jo 21,25). Em realidade, a continuação do Cristo ao longo da história, é a Eucaristia (no terreno cristão) que o exprime e a realiza, e não a narração histórica. E é a Eucaristia que está em relação constitutiva com a Igreja, como mostrou magistralmente Henri de Lubac entre outros.


Roberto Pla

É no sentido de identificação com todas as aderências mortais, ou pelo contrário, de permanência eterna e independente como consciência pura em Cristo vivente, por onde gira o pensamento neotestamentário, o qual traça uma linha meridiana que separa e diferencia as duas esferas de crer e não crer, de haver percebido ou não a intuição do Ser, do si mesmo. Segundo se diz: Quando é chegada a hora, os mortos (viventes) “ouvem a voz” do Filho de Deus (Jo 5, 25), para ser retornados “como mortos à vida” (Rm 6,13).

Em verdade só “os que guardam a Palavra”, primeiro a esperam e logo a intuem, a buscam, a amam, a percebem e, ao final, a encontram e a guardam. Como é a Luz do Conhecimento que vem do Filho, “não saborearão a morte jamais” (Jo 8,52). Eles têm a Vida eterna e não incorrem em juízo, senão que “passaram da morte à Vida” (Jo 5,24). Já não vão morrer, porque são iguais aos anjos; são filhos de Deus e, portanto, “filhos da ressurreição” (Lc 20, 30).


Michel Henry: PALAVRAS DO CRISTO
Pode-se admitir contrariamente às contraverdades da exegese positivista, pseudo-histórica e ateia do século XIX, que as palavras do Cristo nada tem a ver com as invenções de comunidades cristãs tardias. Elas se oferecem a nós a título de documentos autênticos. Nada impede no entanto de considerá-las como palavras humanas, e isso em todos os sentidos da palavra. Palavras pronunciadas por um homem se dirigindo a outros homens na linguagem dos homens e lhes falando deles mesmos. Deles mesmos, quer dizer de sua natureza, de suas qualidades e de seus defeitos, lhes indicando o que deviam fazer, onde está o bem e onde o mal: uma ética, com efeito.

Todavia, estas palavras do Cristo se dirigindo aos homens não os concerniam todas. Certas palavras lhes falam não deles mesmos, mas do que ele é, ele que lhes fala. Estas são as mais estupendas. Elas compõem o que se deve denominar “um discurso do Cristo sobre ele mesmo”. E que este discurso singular circunscreve a parte mais importante de seu ensinamento, aquela donde todo o resto decorre, eis o que não poderia escapar a quem medita declarações sem equivalente na história do pensamento humano. Jamais com efeito estas palavras dirigidas aos homens em uma linguagem que é a sua, e nas quais o Cristo lhes fala dele mesmo, não falam dele como se ele fosse um dentre eles, como se fosse um homem. De maneira velada, desviada a princípio, abertamente em seguida, é bem como Filho de Deus e, assim, aos olhos de todos aqueles que lá estavam, como Deus ele mesmo que ele se designa. E que estas afirmações abaladoras não sejam mais o produto das fabulações tardias de comunidades exaltados, se vê nisto que elas foram durante sua vida a causa direta de sua condenação e de sua morte. No que se tratam de simples profetas, os judeus deles tinham o hábito e eles os suportavam mais ou menos. Se João Batista foi decapitado, não foi porque ele profetizasse ou batizasse, mas, como se sabe, pelo efeito da rusa de uma mulher da qual ele anunciava o adultério.