JOÃO CLÍMACO — A ESCADA DO CÉU
CAPÍTULO III (cont.) — SONHOS
Os principiantes costumam a ser tentados em sonhos. Não se pode negar que o nosso conhecimento é imperfeito e cheio de toda a ignorância; porque, como está escrito, o paladar julga da qualidade dos manjares e o ouvido da verdade das sentenças. Assim como o sol descobre a fraqueza dos olhos, assim as palavras declaram a rudeza dos entendimentos; entretanto, a caridade nos obriga a tratar de coisas que excedem à nossa faculdade. Penso, pois, ser coisa necessária acrescentar a este capítulo alguma coisa sobre os sonhos, para que não ignoremos de todo este gênero de enganos, usado por nossos adversários; mas primeiro que tudo, convém explicar que coisa seja — sonho.
Sonho é movimento do espírito em corpo imóvel; pois, tal costuma estar o corpo quando sonhamos. Fantasia é engano dos olhos interiores na alma adormecida, o que se dá quando aquilo que não é, se representa como se fora, por estar impedido o uso da razão. Fantasia é alienação da alma, estando o corpo a velar, o que se dá quando a alma está como fora de si e com apreensão veemente de alguma coisa. Fantasia é a apreensão da imaginação que passa logo e não permanece.
A causa por que entendemos tratar aqui dos sonhos, é manifesta. Depois que, por amor de Deus, deixamos nossas casas e parentes e nos afastamos deles para a peregrinação, então começam os demônios a perturbar-nos em sonhos, representando-nos nossos pais e parentes tristes e aflitos, ou mortos por nossa causa, ou postos em necessidades, ou em caso de morte; ora, quem dá crédito a tais sonhos, é semelhante àquele que corre, atrás de uma sombra para alcançá-la.
Os demônios, também tentadores de vanglória, às vezes se fazem profetas revelando-nos em sonhos algumas coisas que eles, com a sua consumada astúcia, podem conjeturar, afim de que, vendo realizado o que vimos em sonhos, fiquemos espantados e pensemos que já estamos mui vizinhos da graça dos Profetas, e com isto nos ensoberbeçamos. Muitas vezes acontece, por secreto juízo de Deus, que o demônio seja verdadeiro com aqueles que lhe dão crédito, assim como saía mentiroso para com os que não fazem raso dele; e, como ele seja espírito, vê todas as coisas que se passam nos ares, adivinha que alguém há de morrer, di-lo por sonhos a alguns destes que são mais fáceis em crer, e assim os vai dominando. Porém, nenhuma coisa futura sabe o demônio de ciência certa, senão por conjeturas; e, por este modo, até os feiticeiros uma ou outra vez costumam adivinhar a morte. Muitas vezes acontece que os demônios se transfiguram em anjos de luz, ou tomam figuras de mártires, assim se nos representam em sonhos, e, quando despertamos, enchem-nos de alegria e soberba: este é um dos sinais de suas armadilhas, porque os bons anjos, ao contrário, nos representam tormentos, juízos e separações, deixando-nos temerosos e tristes, quando despertamos. Os que começam a crer no demônio nestes sonhos, depois vêm a ser enganados por ele fora dos sonhos; por isso, é próprio de loucos e de maus o dar crédito a tais vaidades. É verdadeiro filosofo aquele que nenhum crédito lhes dá; pois, deves sempre dar crédito a quem te prega pena e juízo. E se isto te mover à desesperação, também o atribuas ao demônio.