JOÃO CLÍMACO — A ESCADA DO CÉU
CAPÍTULO IV — DA PERFEITA OBEDIÊNCIA
::I::
VEM agora muito a propósito tratar da obediência, para doutrina dos novos cavaleiros e guerreiros de Jesus Cristo; pois, assim como ao fruto precede a flor, assim à obediência precede a peregrinação, ou do corpo, ou da vontade. Com estas duas virtudes, como com duas asas douradas, levanta-se até o Céu a alma do varão santo; e a isso, por ventura, se referia o Profeta, cheio do Espírito Santo, quando disse: Quem me dera asas como as da pomba, para voar pela vida ativa e descansar na contemplação e na humildade! Penso que não será razoável passar era silêncio o hábito e as armas destes fortíssimos guerreiros: devem eles ter, primeiramente, um escudo, que é a grande e viva fé e lealdade para com Deus e para com o mestre que os exercita, afim de que, aparando e recebendo nele os golpes dos pensamentos de infidelidade, usem, logo e bem, da espada do espírito, cortando com ela todas as suas próprias vontades; revistam-se de uma forte couraça de mansidão e de paciência, contra a qual nada possa qualquer gênero de injuria e desacato, e que faça cair todas as setas de palavras más; tenham também um elmo salvador, que é a oração espiritual, elmo que guardará a cabeça de sua alma; e, além disto, tenham os pés não juntos, mas um adiante, aparelhado para executar a obediência, e o outro atrás, posto em continua oração. É este o habito, é essa a armadura dos verdadeiros obedientes; vejamos, agora, que coisa seja obediência.
Obediência é perfeita abnegação da alma, abnegação declarada por exercício e obras do corpo; obediência é perfeita abnegação do corpo, declarada com fervor e vontade da alma: porque, para a perfeita obediência, é necessário que tudo concorra, tanto o corpo como a alma; e tudo é necessário que se negue, quando a obediência o exige. Obediência é mortificação dos membros em alma viva. Obediência é obra sem exame, morte voluntária, vida sem curiosidade, porto seguro, escusa perante Deus, menosprezo do temor da morte, navegação impávida, caminho pelo qual dormindo se transita. Obediência é sepulcro da própria vontade e ressurreição da humildade; pois o verdadeiro obediente, a nada resistindo, fazendo sem discernimento tudo o que lhe é mandado (quando não é claramente mau), confiando humildemente na discrição de seu prelado, santamente desta maneira mortificando sua alma, seguras contas de si dará a Deus. Obediência é resinar, com grande discrição, a própria discrição.
No princípio deste santo exercício, para mortificar os membros do corpo ou a vontade da alma, há trabalho. No meio, às vezes há trabalho, às vezes descanso; mas, no fim, há perfeita paz, tranquilidade e mortificação de toda a desordenada perturbação. Então, este bem-aventurado acha-se obediente, vivo e ao mesmo tempo morto, vivo por ver que fez sua própria vontade, morto por temer sempre a carga da própria vontade.
Todos vós que desejais despojar-vos de empecilhos para passar esta carreira espiritual; todos vós que desejais pôr o jugo de Jesus Cristo sobre o pescoço e vossas cargas sobre os ombros dos outros; todos vós que desejais assentar-vos e inscrever-vos no livro dos servos, paca receber por este assentamento carta de alforria na perpétua liberdade da vida eterna; todos vós que desejais passar a nado o grande mar do mundo em ombros alheios: sabei que há para isto um caminho breve, porém áspero especialmente nos princípios, qual é o estado de obediência. Quem quiser entrar por esse caminho, saiba desviar-se do principal perigo, que é o amor e contentamento de si mesmo, e jamais lhe pareça que é suficiente para reger-se e governar-se a si mesmo. Quem escapar disto, tenha a certeza de que chegará às coisas espirituais e honestas quase antes de principiar a caminhada; pois, obediência é não crer o homem, nem fiar-se de si mesmo, até o fim da vida, nem mesmo nas coisas que pareçam boas, sem a autoridade de seu pastor.
Quando, pelo amor de Deus, determinarmos inclinar a cerviz à obediência, devemos, antes de entrar nesta milícia, (se em nós outros há alguma centelha de juízo e discrição), examinar com todo o cuidado o pastor que tomamos, afim de que não nos aconteça tomar marinheiro por piloto, enfermo por médico, vicioso por virtuoso, de sorte que, em vez de encontrar porto seguro, nos matamos em um golfo tempestuoso e venhamos a ser apanhados em naufrágio certo. Mas, depois que tivermos entrado nesta carreira, já não nos é licito julgar o nosso bom mestre em coisa alguma, ainda que ele, como homem que é, tenha quaisquer pequenos defeitos; e, se assim não fizermos, pouco aproveitaremos da obediência. Aos que querem ter esta inviolável confiança nos mestres, convém muito notar com diligência as virtudes e obras louváveis que seus mestres praticam, e guardá-las em memória, afim de taparem a boca aos demônios, quando estes quiserem demolir essa confiança; pois, quanto mais viva em vosso espírito estiver esta confiança, tanto mais pronto estará o corpo para os trabalhos da obediência. Porém, aquele que tiver caído em infidelidade para com seu prelado, tenha-se caído da virtude da obediência, porque tudo o que carece de fundamento de fé, vai mal edificado; e, por isso, quando algum pensamento te instigar a que julgues ou condenes teu prelado, deves fugir tanto como de um pensamento desonesto; nem jamais te aconteça dar lugar, nem entrada, nem princípio, nem descanso a esta serpente. Fala com este dragão e diz-lhe: Ó perversíssimo enganador, não tenho eu de julgar o meu guia, e sim ele a mim; não sou eu o seu juiz, é ele o meu.
As armas dos mancebos são o canto dos salmos; a muralha, são as orações; o lavatório, as lágrimas de penitência. Mas, a bem-aventurada obediência, dizem que é semelhante à confissão do martírio, porque nela faz o homem sacrifício de si mesmo; pois, quem está sujeito e obedece ao império de outrem, pronuncia sentença contra si mesmo. Aquele que, por amor de Deus, obedece perfeitamente, ainda em caso e coisa que não lhe pareça ser completamente razoável, todavia se escusa ao juízo divino, pondo a carga sobre seu prelado. Aquele, porém, que em algumas coisas quer cumprir a sua vontade e, nessas o prelado manda como ele deseja, não pratica verdadeira obediência; e, portanto, se são más, o próprio prelado fará bem em repreendê-lo por obedecer, e si calar-se, tenho a dizer apenas que ele toma esta carga sobre si. Aqueles que com simplicidade se sujeitam ao Senhor, caminham perfeitamente; porque não se metem a examinar nem deslindar curiosamente os mandamentos de seus maiores, curiosidade a que os demônios sempre nos provocam.
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Antes de tudo, convém que somente a nosso juiz confessemos nossas culpas; e estejamos aparelhados para confessá-las a todos, se por ele assim for mandado, porque as chagas descobertas à toda a luz podem não corromper-se nem afistular-se, como aconteceria se as tivéssemos encobertas ou secretas. Uma vez, vindo eu a um mosteiro, tive ocasião de observar um juízo de um excelente pastor que o governava. Um ladrão veio tomar hábito; o bom pastor e sapientíssimo médico mandou que o deixassem estar com toda a quietação e descanso por espaço de sete dias, afim de que, durante este tempo, visse o estado e a ordem do mosteiro. Passado esse prazo, chamou-o o pastor a sós, e perguntou-lhe se lhe parecia bem morar naquela companhia; e, como ele respondesse, com toda a sinceridade, que sim e de muito boa vontade, o pastor tornou-lhe à outra pergunta, isto é, perguntou-lhe que males havia cometido no século; e, como pronta e discretamente os confessasse todos, para melhor prová-lo, disse o Padre: — Quero que todas essas culpas confesses em presença de todos os Religiosos. Ele, como verdadeiro penitente e como homem que aborrecia de coração todas as suas maldades, pondo de lado toda a humana vergonha e confusão, respondeu que assim o faria e que, se ao Padre aprouvesse, as diria em voz alta mesmo no meio da praça de Alexandria. Reunidos, pois, todos os Religiosos (que eram em numero de duzentos e trinta) na igreja, em um dia de Domingo, lido o Evangelho e acabados os mistérios divinos, mandou o Padre que trouxessem aquele réu. Foram buscá-lo alguns Religiosos, que o apresentaram de mãos atadas atrás, revestido de um aspérrimo cilício, coberta de cinza a cabeça, e disciplinando-o mansamente entre as espáduas; e, ao chegar ele à porta da igreja, mandou-lhe aquele sagrado Padre, com voz terrível, que parasse, porque não era digno de transpor os umbrais daquela porta. O réu, ferido com o golpe desta voz proferida com tão grande conselho e sabedoria, caiu prostrado em terra, tremendo de pavor e debulhado em lágrimas. Diante deste doloroso espetáculo ficaram todos estupefatos, e prorromperam em pranto e gemidos; pois nenhum deles entendia do que se passava. Então, aquele padre e maravilhoso médico mandou-lhe que dissesse em público todos os pecados que havia cometido; e ele obedeceu, fazendo com toda a humildade, e com grande espanto dos presentes, a narração minuciosa de tudo, sem deixar de dizer todas as maneiras de homicídios, feitiçarias, furtos, e outras coisas que não é licito escrever. E, depois de haver-se assim confessado, mandou o Padre tonsurá-lo e recebê-lo na companhia dos Religiosos. Maravilhado eu da sabedoria deste santo Padre, perguntei-lhe depois, em reserva, porque tinha feito tão extraordinária forma de juízo; e ele, como verdadeiro médico, me disse que a fez por duas causas: a primeira, para livrar aquele penitente da eterna confusão mediante aquela presente confusão; a segunda, para que alguns Religiosos, que lá se achavam e que ainda não tinham confessado inteiramente suas culpas, se movessem por aquele exemplo à completa confissão, sem a qual ninguém será salvo.
Outras muitas coisas admiráveis e dignas de memória, vi naquela santíssima congregação e no pastor dela, das quais estou habilitado a contar-vos algumas, porque não pouco tempo ali estive, atendendo grande e continuamente à vida e maneira de convivência daqueles anjos da terra, e maravilhando-me de ver como imitavam aos do Céu. Primeiramente, eram entre si muito unidos por um estreitíssimo vinculo de caridade, e (o que é muito mais de maravilhar) amando-se tanto como se amavam, não havia entre eles atrevimento nem confiança demasiada, nem soltura de palavras ociosas; trabalhavam, com muito estudo, no empenho de não se escandalizarem uns aos outros, nem serem uns ocasião de pecado ou de mal para outros. Depois, se acontecia que algum manifestasse rancor contra outro, o santo pastor desterrava-o, como a homem condenado, para outro mosteiro. Uma ocasião, tendo um deles amaldiçoado a outro, o santo pastor mandou que pusessem aquele fora da companhia, dizendo que não era razoável sofrer no mosteiro demônios visíveis e invisíveis. Vi eu naqueles santos coisas grandemente proveitosas e dinas de admiração. Vi uma companhia de muitos, que com o vínculo da caridade eram todos um só em Jesus Cristo, e todos mui exercitados em obras da vida ativa e contemplativa; pois de tal modo se despertavam e aguilhoavam uns aos outros para as coisas de Deus, que quase não tinham necessidade de ser admoestados pelo pai espiritual, chegando ao ponto de ter entre si ordenadas certas maneiras de exercícios e admoestações a propósito. Acontecia, por exemplo, que algum deles, na ausência do prelado, proferia qualquer palavra ociosa, ou danosa, ou de murmuração: o irmão que esta ouvisse fazia-lhe secretamente um convencionado sinal, para que olhasse por si e moderasse suas palavras; e se, por ventura, o admoestado não via ou não atendia, então o outro se prostrava em terra diante dele, e logo se ia. Quando algumas vezes se juntavam para conversar, toda a prática versava sobre a memória da morte e do juízo final.
Não quero passar em silêncio a virtude singular do cozinheiro daquele mosteiro. Observando eu que ele, perseverando em tão contínua e constante ocupação, estava sempre mui recolhido, e que, além disso, havia alcançado à virtude do pranto, roguei-lhe humildemente que me quisesse descobrir como tinha merecido esta graça. Importunado por meus rogos, respondeu-me em poucas palavras: — Nunca pensei que servia a homens, mas a Deus; sempre me tive por indigno de quietude e repouso; e a vista deste fogo material me faz sempre chorar e pensar no ardor do fogo eterno.
Quero contar outras virtuosas singularidades, que vi entre eles. Percebi que, nem mesmo assentados à mesa, cessavam dos espirituais exercícios, e usavam de certos sinais com que uns aos outros se exortavam à oração, mesmo enquanto estavam comendo; faziam isto, não só quando estavam à mesa, mas também quando por acaso se encontravam, ou quando algumas vezes se ajuntavam. Se acontecia que qualquer deles cometesse alguma falta, vinham os outros pedir-lhe, com toda a instância, que lhes desse cargo de dar conta daquela culpa ao pai espiritual e de receber a penitência dela; e, como aquele grande varão conhecesse esta piedosa contenção de seus discípulos, usava de mais branda correção, e, as mais das vezes ou quase sempre, não queria averiguar nem fazer pesquisa do autor do delito. Se a algum deles acontecia estar porfiando com outro irmão, aquele que acaso por ali passava, prostrando-se a seus pés, assim os amansava; se, por ventura, percebia que guardavam lembrança de alguma injúria, logo fazia-o saber ao padre que, depois do abade, tinha cargo do mosteiro, e trabalhava com todo o estudo para que não se pusesse o sol sobre a sua ira; e se, todavia, continuassem endurecidos e porfiados, não tinham licença para comer até que um ao outro se perdoassem; por fim, se não quisessem submeter-se, expeliam-nos do mosteiro.
Muitos daqueles santos varões eram assinalados e admiráveis em vida ativa e contemplativa, e em discrição e humildade. Vi ali uns velhos reverendos, de mui venerável presença, os quais estavam como meninos, aparelhados para obedecer e correr para uma parte ou para outra, merecendo grande glória com este exercício de humildade. Vi alguns que, havia cinquenta anos, militavam debaixo da obediência, os quais, perguntando-lhes eu que consolação, ou que fruto, haviam alcançado de tanto trabalho, uns me respondiam que, por tal meio, tinham chegado ao abismo da humildade, com a qual estavam livres de muitos combates do inimigo, e outros me respondiam que, por aí, chegavam a perder o sentimento das injúrias e desonras. Vi outros daqueles varões dignos de eterna memória, cobertos de cabelos brancos, porém com rostos angélicos, os quais chegaram a uma profundíssima inocência, cheia de simplicidade, alcançada com grande fervor de espírito e temor de Deus. Primeiro se acabarão os meus dias de vida que eu possa explicar todas as virtudes que ali observei; e, como a santidade daquela gente chegava até o Céu, tenho por melhor adornar esta doutrina com os exemplos de seus trabalhos e virtudes, do que com a baixeza das minhas palavras.