Escada Santa III

JOÃO CLÍMACO — A ESCADA DO CÉU

CAPITULO III

Neste capítulo se trata do segundo grau de renúncia, que consiste na mortificação dos apetites e afetos, como os tem mortificados somente aquele que devirás e de todo o coração está afeiçoado às coisas divinas. E repete-se muitas vezes esta palavra — deveras — , para dar a entender que não é qualquer grau de devoção que causa este afeto, mas a verdadeira, grande e profunda afeição do amor de DEUS; porque, assim como uma luz grande escurece e ofusca outra menor, como o sol faz às estrelas, assim o amor de DEUS, quando é muito grande, como soe ser o dos santos, anuvia e escurece todos os outros peregrinos amores. Ali decorre que assim como, na balança, quanto mais sói um lado, tanto mais baixa o outro, e vice-versa, — assim quanto mais cresce o amor de DEUS, tanto mais decresce o amor do mundo, e vice-versa. Bem-aventurado seria aquele que, despedido o amor do mundo, só se sustentasse com o amor de DEUS ; porque esse seria como outro espiritual Jacó, a quem foi dado, por benção, que coxeasse de um pé e do outro ficasse são. Aliás, ninguém pense que por isto é excluído aqui o amor e afeição dos parentes, amigos e benfeitores, porque isto é natural e devido, quando é bem ordenado, amando-os e querendo-os por DEUS, compadecendo-os de seus trabalhos. Tudo isto, porém, se há de fazer, de maneira que não seja enredado nosso coração neste laço, por demasiada afeição, como muitas vezes acontece.

PEREGRINAÇÃO é desamparar com toda a constância tudo quanto nos impede o propósito e exercício de piedade, que é louvar e buscar a Deus. Peregrinação é um coração vazio de toda a vã confiança, sabedoria não conhecida, prudência secreta, fugida do mundo, vida invisível, propósito não revelado, amor do desprezo, apetite de angústias, desejo do divino amor, abundância de caridade, aborrecimento de passar como sábio ou como santo, e um profundo silencio da alma. Soe muitas vezes, ao princípio, fatigar aos servos de Deus esta maneira de vida tão árdua, e vai se acalmando o fogo deste desejo de afastar-se da pátria e dos seus, desejo que nos provoca a ser afligidos e desprezados por amor de Deus; mas, é de notar que, por maior e mais louvável que seja esta peregrinação, deve ela, por isso mesmo, ser examinada com toda a atenção.

Consideremos que, como diz o Salvador, ninguém e louvado como profeta entre os seus e em sua pátria; e vejamos que não seja para nós ocasião de vanglória a peregrinação e saída da pátria. A peregrinação verdadeira é uma perfeita separação de todas as coisas, com intento de jamais, tanto quanto seja possível, separar de Deus o nosso pensamento. Peregrino é amador de perpétuo pranto, arraigado nas entranhas pela memória de seu Criador. Peregrino é aquele que despede e expele sempre a memória e afeição de todos os seus, enquanto lhe são impedimento para ir a Deus.

Quando te determinares a peregrinar e a apartar-te à soledade, não te detenhas no mundo à espera de levar contigo as almas dos que estão ainda presos a ele, pois pode acontecer que, durante este tempo, te assalte o inimigo e arrebate o teu bom propósito. Muitos tem havido que, pretendendo levar consigo alguns destes preguiçosos e negligentes, pereceram juntamente com eles, apagando-se-lhes com a dilação a chama deste divino fogo e divina inspiração. E, por isso, logo que sentires em ti esta chama, corre apressadamente, porque não sabes se se apagará tão depressa, de sorte que fiques às escuras. Nem todos nós somos obrigados a salvar os outros, porque, como diz o Apóstolo, cada um responde a Deus por si; e, em outro lugar, diz: Tu que ensinas a outros, como não te ensinas a ti mesmo? Isto é como se dissera: As necessidades e obrigações dos outros, não as conhecem todos; mas, as suas próprias, cada um as conhece e assim é obrigado a acudir a elas.

Tu, que te determinas a peregrinar, guarda-te do demônio guloso e vagabundo, isto é, daquele que, com título de peregrinação, pretende cevar a curiosidade e o apetite da gula, contando com os convites e hospedagens que achará em diversos lugares, visto que a peregrinação sabe dar ocasião a este demônio. Grande coisa é haver mortificado a afeição de todas as coisas perecíveis; e a peregrinação é mãe desta virtude. Aqueles que, por amor de Deus, andam peregrinando, hão de deixar todos os afetos do século, e estar como mortos para suas coisas, afim de que não pareçam, por uma parte, apartados do mundo, e, por outra, presos às suas afeições. Aqueles que se afastaram do século, não mais queiram ter qualquer relação com o século, porque muitas vezes os vícios, que de muito tempo estão adormecidos, facilmente costumam despertar. Nossa mãe Eva, contra sua vontade, saiu do paraíso; mas, o monge, pela sua, se desterrou de sua pátria. Aquela foi expulsa, afim de que não voltasse a comer da árvore da desobediência; este, para não padecer perigo de seus incentivos carnais, foge, como de um açoite, da vizinhança destes lugares do mundo, porque o fruto que não se vê com os olhos, não move tanto o coração.

Também quereria que não ignorasses outra maneira de engano, de que usam os demônios: muitas vezes eles nos aconselham que não nos apartemos dos seculares, dizendo-nos que maior coroa será, se, vendo mulheres e andando no meio dos laços, escaparmos deles, vivendo limpamente, lutando com as nossas paixões e vencendo-as.

Depois de haver peregrinado alguns anos fora de nossa pátria, e de haver alcançado um pouco de religião, ou de compunção, ou de abstinência, logo os demônios começam a combater-nos com alguns pensamentos de vaidade, incitando-nos a regressar à nossa pátria, para edificação e exemplo de todos aqueles que antes nos viram viver desordenadamente no século. Se, por ventura, temos algumas letras, ou alguma graça no falar, então nos apertam mais fortemente, incitando-nos a voltar ao século para guardar as nossas almas e as almas dos outros; e, deste modo, conseguem que a fazenda que no porto adquirimos com trabalho, no mar alto a percamos. Não imitemos a mulher de Lot, mas ao mesmo Lot; porque a alma que voltar ao lugar donde saiu, ficará como uma estátua que não se move e dissolver-se-á como sal, antes que outra vez possa facilmente voltar a Deus. Foge do Egito; e de tal maneira fujas, que nunca mais voltes, porque os corações que a ele voltaram, não gozaram daquela quietíssima e pacifica terra de Jerusalém. Contudo, não é mau que aqueles que, no princípio de sua conversão, deixaram a pátria e todas as coisas com ela, para conservarem-se na infância de sua profissão e fechar a porta a tudo quanto a pudesse prejudicar, voltem a ela, depois de confirmados e adiantados na virtude e perfeitamente purgados, afim de fazer outros participantes da salvação que alcançaram; pois, aquele grande Moisés, que viu a Deus e foi escolhido para procurar a salvação de sua gente, muitos perigos passou no Egito e muitas aflições e trabalhos passou neste mundo por essa causa.

Peregrino é aquele que, como homem de outra língua e morador em uma nação estrangeira, entre gente desconhecida, vive somente consigo e no conhecimento de si mesmo. Ninguém pense que desamparamos nossa pátria e nossos parentes porque os aborreçamos (jamais Deus queira que tal seja a nossa intenção), mas para fugir ao dano que de sua parte nos possa vir. Nisto temos, como em tudo o mais, a doutrina e o exemplo do nosso Divino Salvador, que muitas vezes desamparou a seus pais; e, sendo-lhe dito por alguns que procurasse sua mãe e seus irmãos, logo o Mestre nos ensinou este santo ódio e liberdade de coração, dizendo: Minha mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade de meu Pai, que está nos Céus. Seja teu pai aquele que pode e quer trabalhar contigo e ajudar-te a descarregar a carga de seus pecados; tua mãe seja a compunção, que te lave das manchas e sujidades da alma; teu irmão seja aquele que juntamente contigo trabalha e peleja no caminho do céu; tua mulher e companheira que de ti nunca se afaste, seja a memória da morte; teus filhos muito amados sejam os gemidos do coração; teu servo seja teu corpo; e sejam teus amigos os santos anjos, que na hora da morte te poderão ajudar, se agora procurares fazê-los familiares e amigos teus. Esta é a geração espiritual daqueles que buscam Deus. Antes desagradar a nossos pais do que a Deus, porque este nos criou e remiu, ao passo que aqueles muitas vezes destruíram aos que amaram e foram causa de sua condenação aos tormentos eternos. O amor de Deus exclui o amor desordenado dos pais, e quem acreditar que estes dois amores juntos podem conciliar-se, engana-se; pois, como já disse o Salvador, ninguém pode servir a dois senhores. Por essa mesma razão, disse ele em outro lugar — Não vim trazer paz à terra, mas guerra, porque veio apartar os que amam a Deus dos que amam o mundo, os terrenos e materiais dos espirituais, os ambiciosos dos humildes. De tal porfia e separação se alegra o Senhor, quando são feitas por seu amor. Cuida com atenção em que não fiques secretamente tomado do amor de teus parentes; vendo-os naufragando no dilúvio das misérias e trabalhos deste mundo, não vás desprovidamente socorrê-los e perecer juntamente com eles nesse mesmo diluvio. Não lastimes os pais e amigos que choram tua saída do mundo, para que não tenhas sempre de chorar: quando eles te procurarem como abelhas, ou, para melhor dizer, como vespas, e começarem a fazer lamentações a teu respeito, volta a toda a pressa e fortalece teu coração com a memória da morte e com a consideração de teus pecados, para que com uma dor ofusques outra dor. Muitas vezes eles prometem-nos que tudo se fará à nossa vontade; mas, assim procedem enganosamente, com intenção de atalhar-nos o caminho e trazer-nos à sua vontade.

Quando nos separarmos do mundo, seja o nosso retiro nos lugares mais humildes, menos públicos, e mais apartados das consolações do mundo. Se fores nobre, esconde, quanto puderes, e em coisa alguma mostres, a limpeza e nobreza de tua linhagem, para que não pareças nas palavras um e nas obras outro, nas palavras, pregando humildade, e, nas obras, vaidade. Ninguém peregrinou tanto como aquele grande Patriarca, a quem foi dito: Sai de tua terra e do meio de teus parentes e da casa de teus pais. Assim foi ele chamado a viver entre gente barbara e de língua estranha. Os que procuraram imitar esta tão admirável peregrinação, algumas vezes foram pelo Senhor levantados a grande glória; entretanto, aquele que é verdadeiramente humilde deve escusar-se a esta glória, e defender-se dela com o escudo da humildade, posto que divinamente lhe seja concedida. Quando os demônios nos louvam por esta virtude da peregrinação, ou por outra qualquer insigne virtude, devemos logo recorrer com grande atenção à memória daquele Senhor, que peregrinou por nós desde o Céu até a terra; e acharemos que, ainda mesmo que vivêssemos por todos os séculos, não poderíamos imitar a pureza desta peregrinação. Qualquer afeição desordenada de parentes ou não parentes, que pouco a pouco nos acarreta ao amor das coisas do mundo e amortece em nós o fogo do amor de Deus, há de ser evitada com toda a diligência; pois, assim como é impossível olhar com um dos olhos o Céu e com o outro a terra, assim também o é, estando com o corpo e com o espírito afeiçoados ao mundo, dedicar afeição pura às coisas do Céu. »

Com grande trabalho e fadiga se alcança a virtude e se formam os bons costumes; e pode acontecer que aquilo que com muito trabalho, e em muito tempo, se alcançou, em pouco tempo se perca. Aquele que, depois de ter renunciado ao mundo, quer viver e conversar com os homens do mundo, ou morar perto deles, é certo que há de cair nos mesmos perigos e enlaçar seu coração nos mesmos pensamentos. E se não se enlaçar, ao menos julgando e condenando aos que assim se enlaçam, ele também se enlaçará.

SEGUE: SONHOS