Escoto Eriugena — Homilia sobre o Prólogo do Evangelho de João
VI No princípio
“No princípio era o Verbo”, ele escreve.
Aqui devemos notar que a significação que o santo Evangelista dá a sua expressão “era” não é temporal mas substancial. Posto que o verbo “ser”, do qual derivamos por conjugação irregular o imperfeito “era”, contém um duplo sentido. Algumas vezes significa subsistência, sem movimento temporal, do que seja predicado, caso no qual é chamado “verbo substancial”. Outras vezes, entretanto, indica como outros verbos um movimento temporal. Logo, quando o Evangelista afirma que “No princípio era o Verbo”, é como se estivesse dizendo abertamente, “No Pai subsiste o Filho”. Que pessoa, de fato, de mente sã diria que o Filho a qualquer tempo subsiste temporariamente no Pai? Pois apenas onde a eternidade é conhecida pode a verdade imutável ser compreendida.
E com receio de que alguém pense que o Verbo subsiste no princípio sem diferença substancial, o Evangelista imediatamente adiciona, “E o Verbo estava (era) com Deus”. Ou seja, “O Filho subsiste com o Pai em unidade de essência e distinção de substância.
E novamente, com receio de que um contágio venenoso infecte qualquer um — tal como: o Verbo está apenas no Pai e com Deus, mas não subsiste substancialmente e co-essencialmente como Deus com o Pai — erro que caíram os Arianos sem fé — o Evangelista imediatamente adiciona, “E o Verbo era Deus”.
Igualmente, sabendo que não faltariam aqueles que reivindicariam que ele não se referia ao único e mesmo Verbo quando dizia “No princípio era o Verbo” e “o Verbo era Deus”, e assegurariam que o “Verbo no princípio” e “O Verbo era Deus” são diferentes — a fim de destruir esta visão herética — o Evangelista adita em seguida, “Ele estava no princípio com Deus”.
Isso quer dizer: o Verbo, que Deus é com Deus, não é outro do que Ele que estava no Princípio.
Isto pode ser apreendido mais significativamente nas versões gregas do Evangelho. Nestas, se diz autos, ou seja, “o mesmo”, que pode se referir seja a Deus seja ao Verbo — pois estes dois termos, Theos e Logos (Deus e Verbo) são masculinos em grego, assim como é autos também. E portanto a proposição “e o Verbo era Deus; Ele estava no princípio com Deus” pode ser compreendida como afirmação mais clara do que se tivesse dito abertamente “Este Deus–Verbo, que é com Deus, é o mesmo de quem disse, “No princípio era o Verbo”.