Eckhart Universal (Eckhart)

Mestre Eckhart — POR E PARA DEUS
Tradução em Português
Excertos de “Mestre Eckhart Sermões Alemães”, tradução de Enio Paulo Giachini
UNIVERSAL, COMUM, GERAL (ALLGEMEIN)
(Allgemein: comum, geral, universal; gênero e espécie)

Allgemein, aqui em Eckhart, se traduziu quase sempre por universal. Em Eckhart, parece ser mais preciso entender o universal não a partir do usual comum, geral, mas entender o usual comum e o geral como uni-versal (em latim: universalis,-e). Geralmente estamos no uso dos termos comum e geral para indicar classificação, sempre mais abrangente extensionalmente e sempre mais abstrata ou vazia de conteúdo e concreção. Trata-se pois de uma classificação lógico-generalizante dos indivíduos, dos particulares. No pensamento medieval, no seu modo mais originário, universal indica essência, portanto species (espécie) e genus (gênero). Como hoje usamos os termos espécie e gênero como classificação lógico-generalizante, temos dificuldade de entender o universal medieval e também a species e o genus como intensidade do ser, portanto, como consumação optimal, como excelência do conteúdo e contenção no ser. À intensificação do e no ser chamamos de essencialização. O universal medieval como essencialização aparece, quando escutamos o termo species como graça e beleza que esplende na face de uma pessoa, como aspecto; e genus referido à geração, ao nascimento, à nascividade do surgir e assentar-se da vida. Trata-se da intensidade da presença, sui generis, na sua manifestação, cada vez no frescor nascivo da gênese, coesa, sem fragmentação nem parcialização. É o todo vivo, a totalidade dinâmica, cada vez uno, na plenitude do ser: É obra que se se perfaz como universo. Nessa tendência interpretativa, o termo universal significa literalmente vertido, virado ao uno. Essa universalidade não significa tanto o caráter de ser centrado num ponto-algo, cuja identificação se faz enumerando 1 + 1 + 1 etc., mas designa antes o ser da presença cada vez virada, voltada, em voltas com, a partir, dentro de e para o uno. O uno se diz em latim simplex (simples) e significa: uma dobra, ou melhor, sem dobras, inteiriço, intacto, pura e inteiramente ele mesmo, nada de alheio a ele mesmo, isto é, solto e livremente ele mesmo em ab-soluto, portanto abgeschieden, desprendido. Se aqui entendermos o uno como o Um, segundo o que foi sugerido neste glossário, podemos intuir que o problema dos universais no fundo do pensamento medieval não se refere em primeiro lugar nem substancialmente aos temas da disciplina chamada teoria do conhecimento, mas sim à questão ontológica da estruturação interna do ente na sua totalidade, vislumbrada a partir e dentro do que na interpretação do pensamento medieval aparece em Eckhart como desprendimento, isto é, Abgeschiedenheit da deidade. Aqui, quanto mais próximo, quanto mais às voltas com e na cercania do Um, tanto mais ser e quanto mais longe dele, tanto menos ser. O que significa, pois, aqui, menos ser, se, como foi sugerido no nosso glossário, o Um é onipresente, como a possibilidade da percussão primeira do ser do ente, como deslanche da condição da possibilidade do ente ser?

No universal, falar de menos e mais não é adequado, pois tal fala conota quantidade dentro do sentido do ser na entificação da coisalidade-material físico-corporal. Na escalação da ordenação do pensamento medieval, esse “nível” constitui a esfera de pouca intensidade universal. E nesse nível que se dá o uso do termo “universal”, na nossa acepção corrente, na qual o binômio particular-geral (ou individual-comum) opera no sentido do ser da classificação lógico-formal. Aqui, o indivíduo indica o elemento indiviso, numericamente 1, que serve como átomo, que entra na conjuntura de classificação segundo maior ou menor nível de quantificação. Se, projetamos essa acepção da generalização como medida inicial e fundamental das ordenações do ser do mundo medieval, desfocamos e neutralizamos inteiramente a complexidade e riqueza dimensional das outras esferas ou ordens da escalação do sentido do ser do universo medieval, nominadamente dimensão-vida (mundo vegetal), dimensão-sensibilidade ou ânimo sensível (mundo animal), dimensão-humana (animal — ou “ânimo e ânima”, isto é, “alma” — racional) na escalação de pontencialização da intensidade do ser, principalmente no nível qualificado de humano-espiritual: portanto, dos níveis ratio (razão), intellectus (intelecto ou inteligência), spiritus (espírito) e mens (mente), este último adentrando na “dimensão” Deus; e dimensão-espíritos puros (anjos em diferentes níveis como coros de anjos).

Essa escalação da intensidade de ser é como a escada de Jacó. É um único movimento simultaneamente descendente e ascendente, no qual os anjos, mensageiros portadores da vida divina, descem e sobem, formando a dinâmica do encontro do Céu e da Terra. Mantendo-se a simultaneidade do movimento descendente e ascendente, é útil, para melhor compreensão, tematizar o movimento na intensidade de ser, como descendente. No movimento de descida dessa intensidade descendente, não se deve deixar conduzir-se pelo aspecto da diminuição da intensidade, mas sim pela jovialidade do derrame da doação pródiga de si, do ser pela excelência, do ser absolutamente simples, do único ser, portanto de Deus, no qual o ser é todo o ser, plena e inteiramente. A descida, o movimento descendente significa, pois, primeiramente intensidade da alegria e do gosto de ser derramado numa cascata de difusão, constituindo de modo diferente, cada vez próprio, as acima mencionadas dimensões de ser e seus níveis e seus entes, como comunicação da prodigalidade de doação de si, atuante no seio do ser de Deus, e que como fonte da possibilidade de ser, insondável e inesgotável, brota do abismo da vida íntima trinitária da sua deidade1. Essa comunicação de Deus aparece ao mesmo tempo como participação, ou melhor, recepção do ser de Deus, da deidade, do ser único e propriamente ser, pelos entes na sua ascensão entificante, cada vez na sua dimensionalidade própria, como alegria e gosto do retorno à sua origem. Na dinâmica desse retorno, quanto mais o ente está às voltas na cercania da origem, tanto mais universal, simples, total na imensidão e profundidade como na nascividade de ser, e quanto mais universal, tanto mais partícipe do ser-pessoa, à imagem e semelhança da plena liberdade de ser de Deus na união íntima com a vida interpessoal trinitária. Aqui, portanto, o ser-pessoa ou pessoal, não deve jamais ser entendido como referido ao sujeito, ou ao subjetivo, humano. Refere-se estritamente à realidade realíssima, toda própria, do sentido do ser, próprio da deidade do Deus uno e trino, denominada por Eckhart de desprendimento, de Abgeschiedenheit.

Essa escada de Jacó no seu simultâneo descenso e ascenso está indicada no binômio usado por Eckhart: “inwendic” (voltado para dentro ou esotérico) e “ûzwendic” (voltado para fora ou exotérico). Aqui, dentro e fora não se referem à interioridade ou exterioridade a modo do binômio subjetividade-objetividade, aplicado ao homem e a Deus, mas sim à vigência da imanência da limpidez (Lauterkeit)2 sempre una e cada vez nova da percussão “dia-ferente”3 da deidade-Minne, na jovialidade da sua liberdade.


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  1. A vida da deidade na intimidade trinitária, que por assim dizer se abisma a perder-se no seu retraimento, é denominada por Eckhart de Um, e acena para o pudor, a modéstia, a humildade dessa extrema doação que não se faz senhor e dominador, mas sempre de novo Minne, “virgem”, “mãe” e “serva”. 

  2. A palavra lauter significa puro, mero. Conota, porém, a limpidez sonora do clangor de um instrumento metálico de sopro. 

  3. Recurso academicamente inválido e até errôneo, de insinuar que diferença pode ser escutada como composto de — diá + ferente — (diá = através; ferente — proveniente de ferre = carregar). Tudo isso para insinuar que a diferença dos entes não consiste em cada ente ser isto e aquilo como bloco a-tômico de pontualização coisificante, mas sim de variações cada vez originárias das repercussões da uma-mesma percussão que atravessa do início ao fim a totalidade sinfônica.