Dilúvio

Paul Nothomb

TÚNICAS DE CEGO [PNTA]

‘MHH ‘T H’DM ‘(SH)R BR’TY (Gn 6,7). Segond traduz: “Eu exterminarei o homem que criei”. Mas (afar) que Deus entende recobrir de água para terminar. De onde ”liquidar”.

“O Homem que Criei!” Desta vez mais nenhuma dúvida é permitida. E para lhe dar mais solenidade a proposição é posta na boca de Deus. Se Deus visualiza aniquilar o Homem que Criou, é que existe ainda, é que é vivente enquanto tal, pelo menos no pensamento de Deus no momento que ele se exprime. Mas não somente no seu pensamento, que é a única verdadeira Realidade, posto que adiciona: “da superfície da adama”. Desta adama confiante onde se comprazem os homens, desta falsa “realidade” restrita e alienante que o Homem do Éden se fabricou para fugir a liberdade do outro, Deus visualiza de varrê-lo ainda na véspera do Dilúvio! É portanto que ele aí se encontra sempre também, mesmo se de maneira precária, no estado de traços, de vestígios nestes fragmentos dele que se renovam. E isso apesar da morte e partida registradas de Adão e de todos seus descendentes sethistas, exceto Enoque, da corrupção generalizada pela fusão dos Cainidas e dos Sethistas, reunidos na violência menos e menos selvagem, mais e mais organizada, institucionalizada com seus “heróis”, seus “gigantes”, seus mitos, seus ídolos e seus idólatras, na superfície de adama, que doravante recobre a terra! E em o proclamando, Deus dá nesta reflexão capital que se lhe presta, uma extraordinária definição do Homem, mesmo decadente, tal qual ele o vê na Realidade que é a sua. “Eu vou liquidar o Homem que Criei, diz, da superfície da adama desde o homem até as bestas, até os répteis, até os pássaros do céu, pois me arrependo de os ter deixado fazer”. Deixar fazer por quem, senão pelo Homem que, além dele mesmo, corrompeu sua entourage natural, todos os animais que tornou ferozes ou hostis ou temerosos, e que os homens violentos não podem utilizar senão os domesticando, os quebrando?

“O Homem que Criei”. O verbo (“baraty”) é o “completo” que exprime, sobretudo em discurso direto como é o caso aqui, a perfeição e frequentemente um presente perfeito. Poderia se traduzir “que Criei perfeitamente” se a Criação no sentido bíblico não fosse sempre perfeita. Ou mesmo “que Criei (perfeitamente)” no presente pois bastaria que Deus cesse de pensar o Homem mesmo decadente para que cessemos de existir. Este “completo” na boca de Deus, no discurso direto é de se aproximar daquele de Gen 3,22 onde Deus opõe o ser permanente do Homem a sua perdição provisória.

E depois de 6,7, que não se venha mais a dizer que “haadam” depois da saída do jardim equivale a “adam” e designa coletivamente ou individualmente o homem mortal. Pois neste versículo “haadam” e “adam” figuram todos os dois e se opõem como o todo à parte. “adam” é um fragmento, uma forma reduzida de “haadam”, cujo extermínio levaria também àquele de todos os animais, de fato a toda a Criação que, na concepção bíblica, só existe com vistas ao Homem. O texto é perfeitamente claro: “Liquidarei o Homem (“haadam”) que Criei da superfície da adama, depois o homem (“adam”)… etc.” Em nossas bíblias que não distinguem o Homem do homem pelo emprego de uma maiúscula, isto dá como em Segond: “Exterminarei o homem… em seguida o homem… etc.” Compreenda quem possa!

Deus não tem ilusão sobre Noé. Ou talvez tenha? Ele “anda com os deuses” dizemos com os ídolos, como Enoque (não é forçosamente pejorativo). É portanto um homem piedoso e mesmo “justo” segundo o texto, mas este adiciona “nas sua geração” o que relativiza o elogio, pois diante de Deus e mesmo diante dos ídolos esta geração é inteiramente corrompida. Deus anuncia a Noé que vai destruí-la, mas o poupa ele e sua família, assim como um par de cada uma das espécies animais. É uma medida conservadora. Pois apesar de sua indignação, de sua tristeza, de sua cólera e de seu… todo-poder, Deus não pode exterminar o Homem, e não o quer. Não quer aniquilar sua obra, não quer perder seu desafio sobre o Homem. O Homem pode desesperar do Homem e disto não se priva, mas Deus não. É a grande lição a tirar do dilúvio. Mesmo se disto ele tem vontade e por vezes a intenção, Deus não pode se desesperar do Homem e não se desesperará jamais. Noé a quem ele fala não lhe responde. Ele o escuta, posto que segue suas instruções para a construção da arca, mas manifestamente nada compreendeu. Não compreenderá nada até o final. Não evoluirá como Enoque que um belo dia se “ausentou” da condição humana. Noé a porta nele. Ela a transporta com ele através do dilúvio. Quando as águas que cobrem a terra abaixam o que seu olhar vê emergir não é a terra, como o precisa no relato, é a adama. Por duas vezes. Pois ela está na sua mente e ele projeta sobre a Realidade da Criação então Irrealidade lógica que se tornou sua “realidade” e que toma por “realidade”. E Deus disto se acomoda. E diz porque: “É por causa do Homem”.

Noé anda com os deuses (“haelohim” 6,9) mas é Deus (“elohim” 6,13 e continuamente em seguida) que lhe fala sem que jamais ele o responda. A terra está corrompida diante dos deuses (haelohim 6,11) mas também diante de Deus (“elohim” 6,12) com quem não se deve confundi-los, como fazem nossas bíblias, que repetem duas vezes a mesma coisa nas frases que se seguem. Se a segunda era inútil, a supor que provém de uma outra fonte literária, o “compilador final” a teria suprimido.

Julius Evola

O DILÚVIO NA TRADIÇÃO PRIMORDIAL

Visto desde baixo, desde o cenário terrestre, este enlace mítico que em alguns textos das primitivas seitas judeu-cristãs se menciona sob a denominação alegórica dos amores de Elohim com Éden, se descreve no capítulo 6 do Gênesis. É considerado por muitos esta passagem como um episódio histórico difícil de interpretar, mas isto é de esperar quando apareça com maiores esclarecimentos. Se diz nele que os filhos de Deus (este anjos “multiplicados” mas que são quanto a sua luz “como um só”, o homem pneumático, varão), tomaram por mulheres as filhas dos homens. Deste matrimônio genesíaco nasceu, sem dúvida, a linhagem de Set vindo da descendência de Caim e da justiça redimida de Abel o justo, quer dizer, do espírito ou essência não identificado pela consciência dos atuais filhos ou herdeiros de Set, os membros deste gênero humano que vivem ignorantes do hóspede angélico, do “pobre” espiritual, que hospedam em si mesmo e dos quais, portanto, são templo.
*Então disse o SENHOR: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos. (Gen 6:3)

YHWH avisou a todos quando se consumiu o matrimônio dos deuses: “Não permanecerá para sempre meu espírito (ruah, nesamah) no homem, porque não é mais que carne” (Gn 6,3).
*Este aviso o evoca Malaquias quando diz: “Não fez ele um só ser que tem carne e espírito?” (Mal 2,15).

Por conseguinte ficaram fixados os dias — os que eram necessários para alcançar a epignosis, conhecimento completo, ou maior — em cento e vinte anos, quer dizer, justamente os do cumprimento da “medida” perfeita. Como referência temporal e orientadora conta o Gênesis que isto ocorreu quando a terra estava habitada por gigantes (nephilim) com o qual identifica a aparição do gênero humano com o período antediluviano dos grandes habitantes terrestres pré-históricos.

Roberto Pla

O acontecimento do Dilúvio, que segundo Pedro deve ser considerado como “figura” do batismo, só concluiu para Noé quando a “pomba (= Shekinah = a presença ) veio ao entardecer, e eis que trazia no bico um ramo verde de oliveira”.

O Espírito do Senhor, em forma de pomba (a Shekinah = a presença ), se pôs sobre Noé e o ungiu. Segundo a exegese “oculta” que aqui seguimos, tudo isto significa que sobre a geração humana se abriu um “sinal”, pois ficou desde então estendido um arco nas nuvens, como uma teofania ou Caminho aberto para a alma.

Da rama verde transportada pela pomba se produz o azeite que pode levar em sua lâmpada todas as virgens prudentes da terra. A possibilidade de sua unção é a garantia de que a paz, o repouso da alma, por conta da aliança (a união) com Deus, é possível.

A unção que sobre ti se verte desde a pomba (a presença), te diz: Tem fé na “pedra” que tu és tu mesmo isento de determinações. Erige teu Cristo interior como uma estela que deves ungir sem trégua, pois embora ainda não o conheces, ele é o ungido quando o adoras em espírito e verdade.

Tem por seguro que algum dia chegará a ti desde teus céus, surgida de entre as nuvens do arco, uma voz secreta, oculta, silenciosa, mas verdadeira, “manifesta” para ti, que dirá: “Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo”.