Marie Madeleine Davy — Iniciação Medieval
SABEDORIA MEDIEVAL
A gênese e a formação de um vocabulário são sempre providas de uma grande importância. Quando os homens da Idade média utilizam as palavras Sabedoria e Filosofia, eles se servem de termos que, no curso dos séculos, sofreram numerosas mutações sobre um plano histórico fora mesmo do contexto particular no qual se inserem.
Sophia se encontra desde o começo da literatura grega. Quer se trate de Homero ou de Píndaro, ela designa o exercício de uma arte de ordem manual ou intelectual. Seu emprego se estende tanto a uma atividade material como à música, à poesia ou à medicina; todo domínio de uma técnica é sabedoria. Pouco a pouco, este sentido evoluirá para se colocar em um nível superior. Com Heráclito a sabedoria não consiste mais em possuir perfeitamente uma ciência ou arte, ser sábio significa falar segundo a verdade, escutar o Logo e obedecê-lo. Os sofistas insistirão sobre esta realidade e sua plenitude. A experiência da sabedoria passa assim do exercício do conhecimento de uma arte a uma ordem suprema incluindo valores. Poderosa, ela aparece superior, no dizer de Xenofon, à força dos homens e dos cavalos. Com os pré-socráticos, a noção de sabedoria adquire mais e mais amplitude. Ela pertence por excelência à Divindade, é neste sentido que Diógenes Laércio podia escrever: “Ninguém é sábio, senão a Divindade”. A esta afirmação correspondem muitas proposições: Sócrates recusa o nome de sábio, só a Divindade possui a sabedoria, o homem não pode senão dela participar e sua própria sabedoria será sempre limitada. No Banquete ou no Fedro, Platão manterá uma linguagem idêntica, atribuindo a sabedoria aos deuses e o título de amigo da sabedoria ao homem que deseja ardentemente conquistar um tal bem cujo alcance é a princípio raro e difícil. Se tornar sábio cria um parentesco com a Divindade, eis porque Píndaro)) compara o sábio a um deus. A1; ninguém pôde subir aos céus para apreendê-la e a fazer descer das nuvens (Ecl I,5,8). Esta Sabedoria, o Eterno a comunica segundo sua escolha (Prov. II,6). Ela a dá a José a fim de lhe permitir interpretar sonhos (Gen XLI, 25,38). Os grandes beneficiários desta Sabedoria são Moisés (Josué, filho de Nun, é cheio de sabedoria, pois Moisés pôs sua mão sobre ele, (Deut. XXXIV, 9), Davi (II Sam. XIV,20), Daniel (Dan I,17; V,11).
A Sabedoria é comparada a uma árvore de vida (Prov III, 18) e a uma fonte de vida (Prov XVI,22). Sua posse é preferível às pérolas (Prov VIII,11), à força (Ecl IX,16), às armas; ela tem por morada o discernimento (Prov III,12; Prov IX,18) e se mantem em repouso no coração inteligente (Prov XIV,33). Ser sábio, é compreender sua via (Prov XIV,8), vigiar seus passos (Prov XIV, 15), fugir das palavras sem consideração (Jó XV,2), os maus companheiros, as mulheres levianas (Cf. Prov. II,9-19; V,1; VII,4); a vertigem da riqueza (Ex XXVIII,16). Se tornar sábio, é saber escolher entre o bem e o mal (II Sam XIV, 17-20), observar fielmente os mandamento de Deus (Deut IV,6); Sl XIX,8, XXXVII, 30-31, CXIX, 98, etc.).
No AT, a Sabedoria parecia oculta e plena de mistério. O Verbo encarnado vai manifestá-la. Para ele, ela se revela aos homens; nele todos os homens são chamados a se tornar sábios. A sabedoria do Cristo é muitas vezes atestada nos Sinóticos. Se vê ele crescer em sabedoria (Lc II,52); a Sabedoria de Deus — da qual fala Lucas — designa o Cristo: as obras da Sabedoria (Mt 5,19) são aquela do Cristo (Mt 5,2).
Paulo e João falarão abundantemente da Sabedoria do Verbo. Ao encontro da falsa sabedoria, aquela do discurso, Paulo opõe a cruz do Cristo (1Cor I,17): «Eu destruiria a sabedoria dos sábios e aniquilaria a ciência dos cientistas. Onde está o Sábio? Onde está o doutor? Onde está o disputador deste século? Deus não convenceu de loucura a sabedoria do mundo?» (1Cor I, 19ss). Paulo não conhecia a filosofia grega. De onde a fraqueza de seu discurso ao Areopagio comparado com o filosofia e da sabedoria grega que fazia do homem um deus. Segundo a ideia fundamental de Paulo, o mundo com sua sabedoria, não tem “conhecido Deus na Sabedoria de Deus” (ibid., 21). Em face dos judeus que queriam milagres e dos gregos que buscavam sabedoria, Paul prega o “Cristo crucificado”. Esta constante oposição em Paulo entre a sabedoria do mundo e aquela de Deus, descrita na Epístola aos Romanos (I,22; XII,16,27), se tornará um tema fundamental da filosofia cristã.
Esta aproximação entre o Cristo e a Sabedoria, Paulo o torna ainda mais dominante em fazendo assumir ao Cristo as obras cumpridas pela Sabedoria antes da manifestação do Filho de Deus (Cf. 1Cor X,4), e nele atribuindo os privilégios da sabedoria (Rom I,15). Tal a Sabedoria, o Logos é a imagem de Deus, ele é enquanto Deus criador do mundo, nele se encontram ocultos “os tesouros da sabedoria e da ciência” (Col II,2ss). Revestir o Cristo, é se tornar sábio.
Entre Paulo Apostolo e a literatura sapiencial, reportes podem facilmente se estabelecer, o termo sabedoria é citado muitas vezes; pelo contrário, a palavra sabedoria não se encontra em João. No entanto, é bem evidente que o Prólogo do Evangelho de João coincide com o que a Sabedoria ensina a seu respeito: a Sabedoria e o Verbo são idênticos; o que é dito do Verbo é análogo ao que é enunciado da Sabedoria, quer se trate de sua presença em Deus, de sua realidade, da criação do mundo, todas as prerrogativas da sabedoria pertencem ao Verbo. Sabedoria e Verbo são eternos e transcendentes, preexistentes ao mundo, dando aos homens avisos, os guiando, lhes mostrando a necessidade de os escutar e de seguir seu ensinamento. Uma frase de Atanásio se apresenta como a síntese da doutrina de João: «Não há senão uma Sabedoria em Deus; esta Sabedoria, é seu Verbo» (De setentia Dionysii, cap. 25).
O Logos enquanto Sabedoria inaugura a futura filosofia cristã, o Cristo — se verá em falando da filosofia patrística e monástica — aparece como o modelo dos filósofos. Abraçar a doutrina do Cristo, é optar pela sabedoria e por aí mesmo se tornar filósofo. As palavras filosofia e filósofo são raramente empregadas no Novo Testamento. Os Sinóticos dela não fazem uso. Os Atos dos Apóstolos empregam o termo philosophos a respeito dos filósofos epicureanos que escutam Paulo em Atenas e o tratam de falastrão (XVII,18). Na Epístola aos Colossenses, Paulo suplica a seus auditores de não se deixar seduzir “pela filosofia” (II,8); ele confere à filosofia o sentido pejorativo que dará mais tarde ao pensamento pagão; uma tal atitude de espírito deve sem dúvida ser atribuída a sua conversão; à filosofia dos homens ele entende sempre opôr a Sabedoria de Deus (1Cor I,24).
Sophia é necessária, segundo Platão, ao governo da cidade, e mais ainda a tudo o que concerne a alma. Aqui encontramos o emprego da palavra filósofo ligada ao progresso espiritual, à ciência última que é a ciência do Bem.
É partindo da Bíblia que o homem medieval adquire o sentido da Sabedoria e de uma certa forma de filosofia. De uma certa forma somente. Com efeito, se o termo sabedoria se apresenta frequentemente no Antigo Testamento, aquele de filosofia dele é totalmente ausente; ele não se encontra na Septuaginta. As palavras gregas filosofia e filósofo não possuem equivalente em hebreu.
O Livro da Sabedoria utiliza amplamente dados fundamentais da filosofia grega. Concernindo seu autor e as influências que pode sofrer, as notícias são divididas. Estudando o vocabulário deste texto, A.M. Malingrey observa que os termos empregados para descrever o amor da Sabedoria dependem principalmente da família de agape enquanto que philein só aparece uma única vez. Agape é tipicamente cristão e se opões a Eros.
Segundo o AT, a Sabedoria em sua plenitude pertence a Deus somente: é pela Sabedoria que ele fundou a terra (Prov. III,19). Ela é esta ciência do bem e do mal que Deus interditou ao homem pois sua posse tornaria semelhante a ele (Gn II,17; III, 5,22); eis porque ela está oculta aos olhos dos viventes (Jó XXVIII, 21 ↩