Crouzel Orígenes Pecado

OrígenesCrouzel — O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA

ORÍGENES, Un teólogo controvertido, Henri CROUZEL. Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1998, 379 p. ISBN: 84-7914-363-0, traducción española de la edición original en frances: Origène por las Monjas Benedictinas de la Abadía Santa Escolástica de Victoria, Buenos Aires (Argentina). Tradução de Antonio Carneiro das páginas 293 até 306

A pré-existência das almas compreende-se unicamente pelo pecado original que nela se situa, pois somente completada por este último pode se opor aos ataques marcionitas contra Deus criador, mostrando na diversidade das situações em que se acham as criaturas racionais um resultado das decisões de seu livre arbítrio. Notemos também que a doutrina origeniana do pecado original não se reduz ao que vamos dizer e contém afirmações que em sua época eram tradicionais e seguirão sendo todavia por muito tempo: a impureza da criança em seu nascimento fundamenta para ele a necessidade do batismo e justifica especialmente o batismo das crianças; tal impureza está ligada ao ato carnal que lhe deu origem, etc. É esta uma explicação entre outras do pecado original relacionado com a pré-existência.

Recordemos que as criaturas racionais estavam absortas na contemplação de Deus como estarão os bem-aventurados na restauração final. Formavam uma unidade, uma Igreja, cuja cabeça e Esposo era Cristo em sua humanidade pré-existente. A queda vem a deslocar essa Igreja e por fim a tal unidade. Sua origem está expressada de duas maneiras, ambas em estreita relação com a prática da vida espiritual. Primeiro, a sacietas, a saciedade da contemplação divina. Este termo latino traduz o grego kóros: não significa que a infinitude divina possa de alguma maneira saciar a uma criatura, mas sim, como o demonstrou em uma análise do vocábulo Marg. Harl, kóros e sacietas expressam o fastio da contemplação, algo comparável com a “acedia”, que para os monges orientais é uma das grandes tentações do monge, um fastio do espiritual e finalmente de todas as coisas. Uma segunda explicação parte de uma etimologia clássica entre os gregos, ainda que muito provavelmente artificial, que relaciona psyche — alma — com psychos — frio — . Deus é fogo e calor. Ao distanciar-se de Deus as inteligências se esfriaram, tornaram-se almas. Há pois uma diminuição de fervor e de caridade. Mas, esta degradação da inteligência implica graus na alma porque nem todas caíram ao mesmo nível. Daí provem a diversidade das criaturas racionais, suas diferentes órdens, anjos, humanos e demônios, e dentro de cada órdem sua contínua diversidade. Assim, a queda original não é uma causa imediata, mas sim motivo da diversidade do mundo sensível criado por Deus com posterioridade à ela.

De todos os modos, a queda se deve a uma decisão do livrre arbítrio da criatura racional, o qual é uma de suas características essenciais e que, segundo a doutrina constante de Orígenes, Deus respeita e não força jamais, ainda que a solicite insistentemente. Na exposição da regra de fé do prefácio do Tratado dos Princípios lemos:

“O ponto seguinte também está definido pela predicação eclesiástica: toda alma racional está dotada de livre arbítrio e de vontade…Há que compreender, portanto, que não estamos submetidos à necessidade e que não somos forçados de todas maneiras nem a nosso pesar a obrar o mal ou o bem. Dotados como estamos do livre arbítrio, algumas potências podem nos empurrar para o mal e outras ajudar-nos a obrar nossa salvação; entretanto não estamos constrangidos pela necessidade para obrar o bem ou o mal. Pensam o contrário os que dizem que o curso e os movimentos das estrelas são a causa dos atos humanos, não só daqueles que não dependem do livre arbítrio como também dos que estão em nosso poder.”

Frente ao determinismo pagão da astrologia e das filosofias inspiradas nela, frente também ao determinismo gnóstico dos “hereges das naturezas”. Orígenes permanecerá através de todo seu pensamento um intrépido paladino do livre-arbítrio do humano, que é uma das ideias-centrais de sua teologia e, em diálogo com a ação divina, um dos motores de sua cosmologia. Foi-lhe consagrado um dos grandes capítulos do Tratado dos Princípios que foi conservado em grego na Filocalia (não confundir com a Philokalia): depois de uma reflexão de ordem filosófica, esforçou-se por separar as objeções que se lhe poderiam fazer a partir de textos escriturísticos: este capítulo teve uma influência considerável e o Do livre arbítrio de Erasmo se inspira amplamente nele.

A queda foi universal e alcançou todas as inteligências? Uma alma se livrou certamente, a que estava unida ao Verbo, pois Orígenes diz que ela é impecável, transformada no Verbo, como o ferro submergido no fogo se torna fogo. Mas, não existem outras que tenham escapado da queda? a maioria dos autores o negam, partindo de um a priori: a queda deve ter sido tão universal quanto a apokatastasis final. No último capítulo deste volume veremos se é exato dizer que Orígenes professa com clareza uma apokatastasis universal. Em quanto à universalidade da queda, isso parece estar bem desmentido por alguns textos do Tratado dos Princípios que, como o demonstrou M. Simonetti, supõem-se que algumas inteligências escaparam da queda. Pensa Orígenes que entre as criaturas angélicas que não pecaram, algumas se encarnaram, como Cristo, não à consequência de um pecado, mas sim para servir aos homens e ajudar na missão do Redentor. O Comentário sobre João formula uma hipótese deste gênero a propósito de João Batista e fiando-se de um apócrifo, A oração de José, e também de alguns patriarcas do Antigo Testamento. O Comentário aos Efésios de Jerônimo, amplamente inspirado no de Orígenes, reproduz a propósito de Ef. 1, 4 a mesma opinião a respeito dos profetas e dos santos do Antigo Testamento enviados à terra em corpos terrestres sem haver pecado, para ajudar à Redenção.

Neste caso estão todos os anjos para Orígenes ou somente seus superiores, havendo pecado os demais ainda que menos profundamente que os homens e os demônios ? É difícil dizê-lo. O Tratado dos Princípios afirma que os anjos obtiveram por méritos próprios suas funções, mais altas ou mais baixas, entre os que mandam ou entre os que obedecem: o contrário teria correspondido à uma parcialidade indigna do Criador ? Pode resultar estranho esta insistência de Orígenes sobre o mérito, que provém da polêmica anti-valentina. De todos modos, isto supõe que entre os anjos exista diversidade de méritos. Deve-se à um progresso a partir do estado comum, que alguns textos não excluem, ou pelo contrário à diversos graus da queda ? Uma homilia sobre Números, apoiando-se em 1 Cor 6, 3 : “Não sabeis que julgaremos os anjos ?”, mostra os anjos da guarda julgados juntos com seus pupilos humanos no Juízo final, o qual supõe que possam pecar. Talvez até as funções de anjo da guarda, já dos indivíduos, já das nações ou das Igrejas, e até dos diversos reinos da natureza, representem para eles uma espécie de castigo misericordioso por causa da queda primitiva.

Com os anjos tem que se mencionar os astros. Pois, o Tratado dos Princípios apresenta, seguindo a tradição filosófica, mas sempre a modo de hipótese, os astros como seres animados e racionais, cujas almas preexistiram e foram submetidas à vanidade dos corpos visíveis para serviço dos homens. Eles também seriam suscetíveis de pecar. Sua entrada no corpo é consequência de uma falta, como parecem pensar muitos intérpretes de Orígenes, antigos ou modernos, ou ocorreu só para o serviço do homem, sem desmérito de sua parte ? O texto de Rufino parece mais estar bem a favor da segunda solução.