CRISTOLOGIA — HISTÓRIA SAGRADA
VIDE: História
MICHEL HENRY: EU SOU A VERDADE
Comecemos pela história. Do ponto de vista histórico, a crítica dos textos fundadores do cristianismo se desdobra. Trata-se por um lado da crítica de eventos reportados nestes textos, por outro da crítica histórica dos textos eles mesmos. Para o primeiro, a história dispõe de um critério que nada mais que seu conceito de verdade. Um evento é historicamente verdadeiro se apareceu no mundo a título de fenômeno visível e assim objetivo. A visibilidade do fenômeno, o fato que, visível, pôde ser constatado por testemunhas, é o fundamento de sua objetividade. Ou, se se prefere, “objetividade” no domínio desta ciência objetiva que é a história significa sucessivamente duas coisas: que um fenômeno, o evento, se mostrou e que, tendo se mostrado e tendo deste modo sido ou podido ser conhecido por vários e por muitos, se tornou “verdadeiro” — desta verdade que reconhece a ciência e que se chama precisamente objetividade.
Deixemos de lado uma ocorrência particularmente incômoda para a história e seu conceito da verdade. Suponhamos que um evento tenha sido efetivamente produzido sob a forma de um fenômeno visível no mundo e que no entanto ninguém o tenha notado nem mencionado, oralmente ou por escrito. Um tal evento seria conforme ao conceito de verdade da história, mais radicalmente a sua definição ontológica da realidade, a saber o fato de tornar-se visível e assim de se mostrar no mundo a título de fenômeno objetivo. Um tal evento, no entanto, no entanto não escaparia á verdade da história: apareceu mas ninguém o viu. Ou ainda aqueles que o viram desapareceram, sem deixar traços. Ora, a maior parte dos eventos, aqueles em todo caso que concernem um indivíduo particular ou um grupo limitado de indivíduos, são deste tipo, todos eles escapam à verdade da história. O que está em causa, não são os eventos, não são os indivíduos: estes indivíduos vieram sobre a terra, viveram. O que está em causa, é o conceito de verdade da história, sua incapacidade a apreender a realidade, a realidade destes indivíduos e de tudo isto que lhes está ligado.
Suponhamos que o Todo da realidade seja constituído por indivíduos, então é o Todo da realidade que escapa à história. E que lhe escapa em razão de seu conceito da verdade — mais radicalmente da definição ontológica da realidade que a subentende. É precisamente quando se exige de uma coisa, no caso um indivíduo, que ele se mostre ou que se seja mostrado no mundo a fim de que sua existência atestada desta maneira se torne um fenômeno “objetivo”, um fato histórico, que este indivíduo — que a quase-totalidade dos indivíduos tendo vivido sobre a terra desde as origens se furtem a este gênero de requisito, à verdade da história e à pretensão desta em estabelecer fatos objetivos e, a este título, historicamente válidos.
Essa é a razão pela qual, diante da desaparição geral disto que se tinha pela realidade, a saber a história dos homens enquanto ela é nada mais que aquela de uma multidão indeterminada de indivíduos — diante do fato mais precisamente que esta multidão escapa ao conceito de verdade sob o qual ela pretende a apreender — a história está obrigada a uma reviravolta. Como todo saber vindo esbarrar em um obstáculo insuperável, ela muda de objeto. Posto que os indivíduos escapam a suas garras, ela muda de objeto. E é assim que da história dos homens ela passa a dos textos. É assim que, na perspectiva da história de seu conceito de verdade como aparição no mundo, o corpus dos escritos compondo o Novo testamento adquire subitamente uma importância decisiva, tornando-se o único modo de acesso àquilo que se trata nestes textos, a Cristo e a Deus.
A substituição à análise dos textos, ou melhor, a forma tomada a princípio pelo primeiro impedimento de se abater sobre a segunda, nos coloca diante de uma aporia. A impossibilidade de alcançar, em sua aparição fugidia e agora desaparecida, a existência de indivíduos vivos determinados conduziu a abordagem histórica a se remeter nisto àquela dos textos. Mas toda análise de textos se desdobra no princípio. Ela não considera somente o texto em si mesmo na sua estrutura interna (objeto, portanto, de tipos de análises e de teorizações múltiplas). A referência deste texto à realidade, seja a um estado de coisas estranhas ao texto ele mesmo, eis o que faz sua verdade, aos olhos da história em todo caso. Por um lado, a história tem o texto ele mesmo por um fato histórico, o colocando neste campo de aparição que é o mundo como meio universal dos eventos humanos que ela estuda. Este lugar é sua data, sua dependência a respeito de um contexto social, econômico, ideológico, religioso. Por outro lado, uma vez situado neste campo que o extravasa por todos os lados, o texto vale apenas por sua relação a ele. Estabelecer a verdade de um texto, sua data, a autenticidade dos manuscritos, a língua original na qual eles foram escritos, é, do ponto de vista de história, estabelecer a verdade dos eventos dos quais portam testemunho. A autenticidade dos textos cristãos primitivos, o conhecimento e a análise das primeiras redações, eis o que tornaria mais credível seu conteúdo, este feixe de eventos extraordinários agrupados ao redor do Cristo e de sua existência histórica. Donde, por exemplo, o esforço de análise cristã para situar a redação dos originais a uma data tão próxima quanto possível da época que relatam, a confiabilidade dos documentos devendo estender-se sobre aquela dos fatos. Donde o esforço inverso da crítica cética por contestar esta proximidade, desacreditar os textos e através deles, a história que contam, a história do Cristo — seja o cristianismo ele mesmo reduzido à verdade histórica de um certo número de fatos objetivos, mais precisamente de fatos difíceis ou impossíveis a estabelecer objetivamente.
Henri de Lubac: HISTÓRIA E ESPÍRITO
A Bíblia é cheia de mistérios. Orígenes o lembra quase a cada página de seus comentários ou de sua homilias. Tudo, na história santa, se passa “em mistério”. Tudo que foi escrito é mistério. Há tanto que é impossível explorá-los, ou mesmo apercebê-los todos. Sua grandeza supera nossas forças. Sua densidade é contundente. “Vede que peso de mistérios no oprime!” Mais avançamos em nossa leitura dos Livros santos, mais estes mistérios se acumulam. É como um mar imenso, e quando estamos a ponto de aí nos lançarmos, com nossa pequena jangada que constitui nosso fracos meios, um sentimento de temor nos invade… Nada, na Escritura, é dito ao acaso, nada aí é relatado em vão. Por toda parte aí se ocultam intenções secretas. Os mínimos detalhes de vocabulário, as mínimas anomalias de redação são o sinal de um novo mistério: o Espírito Santo não os quis sem profundas razões. O texto sagrado deve portanto ser “auscultado” por toda parte, e é isto que choca imediatamente o leitor. Mas este caráter misterioso da Bíblia não é afirmado em detrimento de seu caráter histórico. O espírito não quer fazer pouco da letra. Ele não quer “destruir o texto”. Se é a realidade do mundo visível que figura o mundo invisível, será também a realidade da história bíblica que figurará as coisas da salvação e lhes servirá de “fundamento”. São os fatos e gestos dos personagens que ela põe em cena que estão plenos, em sua realidade mesma, de um sentido misterioso.
Em sua Escritura como em sua vida terrestre, pensava Orígenes, o Logos tem necessidade de um corpo; o sentido histórico e o sentido espiritual estão entre si como a carna e a divindade do Logos. Toda a Escritura é por assim dizer “incorporada”; como Aquele que ela enuncia e prepara, ela o é “non in phantasia, sed inveritate”. Sem dúvida, é preciso ir além da história exterior que nos é oferecida nos Livros Santos, sobretudo aquelas do Antigo Testamento, para penetrar até o “mistério espiritual” que aí se encontra oculto. Mas esta verdade supõe sua recíproca. É preciso crer a princípio, em geral, que as coisas se sucederam como são contadas. Elas são “epi to reto”. Os judeus tiveram somente o erro de aí ficar. Contra eles e aqueles que lhes assemelham, “defendemos ao mesmo tempo a letra e o espírito das Escrituras”, não querendo “maldizer a letra” nem blasfemar o espírito”. Tudo que se passou se passou “em mistério”: mas o mistério supõe o fato real. Deve-se crer “o testemunho da história”. “Manente prius historiae veritate”. Assim, quando lemos que os assírios levaram em cativeiro os filhos de Israel, cremos que a coisa teve lugar no passado e e que ela é para nós figura do cativeiro que nos fazem sofrer hoje em dia certos “assírios espirituais”.
Alguns poderiam ser tentados a rejeitar a letra quando ela parece muito inacreditável. Assim para o fato mesmo da criação. Porque não tomá-lo como uma espécie de mito platônico, análogo ao relato do Timeu. Porque não supor pelo menos uma matéria preexistente, que Deus teria organizado? Orígenes no entanto não hesita a receber o relato tal qual, sem se preocupar das repugnâncias do helenismo, e para justificá-lo argumenta contra os filósofos com decisão. Assim também com relação aos milagres. Tão extraordinários sejam eles, aí não vê razão para passar por cima da “interpretação óbvia”.
Quer se trate de episódios, como é o caso sobretudo no Gênesis e no Êxodo, assim como nos Livros do Profetas, ou em preceitos e máximas, como no Levítico e nos Salmos, seu princípio é o mesmo: uns e outros contêm profundezas divinas, mas não conservam menos, na grande maioria dos casos, sua significação literal. Os primeiros “foram realizados sensivelmente”, os segundos devem ter sido ou devem ainda “observados segundo a letra”. Este aspecto sensível, literal, histórico é sempre necessário conhecer. É por seu estudo que convém começar, serve normalmente de base à inteligência espiritual. Será algumas vezes bom aí se fixar um pouco.