Consolatio III

Boécio — CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA LIVRO III
Filosofia Antiga
R.A.Ulmann: Plotino
O hino da nona poesia do terceiro livro da Consolatio philosophiae desenvolve um movimento dialético de processão (proodos), a partir do Uno ou Bem, e retorno (epistrophe) a ele. O esquema geral da via de descenso de todas as coisas, a partir do Uno, e da via de retorno a ele teve grande difusão no medievo (v. Queda e Ascensão). A via de descenso e de retorno foi utilizada pelos filósofos árabes, desde o século VI, e por alguns judeus, a partir do século VII1. Tem Deus como centro. O Uno permanece imóvel (stabilis manens); é princípio (principium) e terminus (fim). O mundo está presente, antecipadamente e eminenter2, no intelecto divino (mundum mente gerens). Sem inveja (livore carens), produz as coisas, devido à sua superabundância. Nenhuma causa externa o impeliu a criar (quem non externae pepulerunt causae); tudo produz por amor donativo e governa com a razão (perpetua ratione gubernat).

O mundo representa uma imagem do arquétipo (similique in imagine formans), tudo é atraído pelo Uno (epistrophe) (ad te reduci facis), completando o círculo: processão e retorno. Assim, o Uno é Alfa e Ômega3, caracterizado como pulcherrimus ou princípio da Beleza.

No hino em referência, Boécio emprega três anáforas — Tu, tu, tu acentuando o caráter de exclusividade do Uno no comando do universo. Conclui com uma invocação a Deus — pater –4, o qual é descanso tranquilo para as almas pias, que, num esforço pessoal, se auto-superaram pela contemplação precedida da abstração radical de tudo que é estranho ao Uno. É mister espancar as nuvens da opinião (nubes terrenas) e livrar-se dos pesos de chumbo que prendem a alma à terra. Desimpedida de tudo, a alma fixa os olhos no Uno-Bem e liberta-se da caverna platônica, sem olhar para trás5. Acha-se, então, no gozo da plena felicidade6.

Quem, por essas achegas, não vê retratado, no hino de Boécio, o pensamento de Plotino?

NOTAS


  1. Os sufis (sufistas), filósofos árabes, quase todos expõem o esquema do descenso e ascensão. Os As’aries, teólogos ortodoxos, combateram a tendência dos sufis. A doutrina do descenso (proodos) dos filósofos árabes penetrou na Espanha, já no século V; ao tratarem da epistrophe, alguns sufistas místicos dizem que a união com Deus consiste na absorção da alma em Deus. (Sufismo é um sistema ascético-místico que afirma ser o espírito humano uma “emanação” do divino no qual deseja reintegrar-se). (Cf. Plotino. Porfírio. San Agustín (Salamanca, 1989), p. 62-74). 

  2. “Secondo la concezione neoplatonica dell’Unità e della sorgente che si riversa, l’Essere di Dio attraverso o nel suo atto creativo non toglie se stesso, esso permane immutabile in sè, assolutamente se stesso” (BEIERWALTES, Werner, Pensare 1’Uno (Milano. 1991), p. 281-282). 

  3. “II modello piu generale di questo movimento dialettico è l’operare dell’Uno o Bene che nell’agire permane in sè ed assoluto: esso è il fondamento e l’inizio che dona, che rende partecipe delia sua Bontà e Unità e cosi costituisce l’Essere, ma insieme è anche il fine dei movimento di ciò che si sviluppa da lui” (id., ibid.. p. 281). 

  4. Entre os gregos, só o estoico Cleantes, em seu famoso hino, denominou Zeus de “pai”. 

  5. Cf. En. VI, 8, 11,4-5. 

  6. “L’esperienza della quiete e la serenità non equivale però ad un addormentamento di ogni questione e pensiero, bensí a loro compimento piu intensivo, in analogia con 1’approdo, espresso per via di metafora, nel ‘porto místico’ ” (BEIERWALTES, Werner, Pensare…, p. 287).