Cobiça [MHSV]

O cristianismo teve a intuição em profundidade desta desrealização principial que a Preocupação opera. A essa Preocupação desrealizante ele chama cobiça. “Vós cobiçais e não tendes” (Tiago 4,2). A razão do fracasso consiste não no que é pedido, mas no modo [207] do pedido, no modo de manifestação com que a Preocupação se preocupa, na medida em que esse modo de manifestação desreali-za tudo o que ele torna manifesto. “… Vós não possuís […] pedis, mas não recebeis, porque pedis mal” (ibidem). A crítica da cobiça é constante no Novo Testamento: “Não consintais em modelar vossa vida de acordo com as paixões” (1 Pedro 1,14; cf. ibidem 4,2). Ao longo de toda esta crítica não cessa de transparecer sua significação, que é a de referir a dissolução ontológica do objeto da Preocupação no meio do qual se abre esta. É por isso que ela assume notadamente a forma de uma crítica do futuro: “… ‘Hoje ou amanhã iremos a tal cidade, passaremos ali um ano, negociando o obtendo bom lucro’. E, no entanto, não sabeis nem mesmo o que será da vossa vida amanhã!” (Tiago 4,13-14), para chegar à afirmação de autossuficiência da Vida em sua independência de tudo o que decorre do mundo: “Precavei-vos cuidadosamente de qualquer cupidez, pois mesmo na abundância, a vida do homem não é assegurada por seus bens” (Lucas 12,15). Donde a oposição entre os dois tesouros, segundo este que se acumula no mundo em vez de se edificar na vida. A oposição Vida/Preocupação é formulada em sua nudez: “Quem dentre vós, com suas preocupações, pode prolongar por um pouco a duração de sua vida?” (ibidem 12,25). Ela assume sua forma paroxística na própria palavra de Cristo, que não roga pelo mundo (João 17,9), que recusa a realeza do mundo (ibidem 6,15), que exige que o homem escolha: “Quem não está a meu favor está contra mim, quem não ajunta comigo, dispersa” (Lucas 11,23). É o estatuto fenomenológico da Preocupação, portanto, que se torna presa de uma estranha dialética. Enquanto é um modo de vida, a preocupação decorre do modo de fenomenalidade próprio dela, experienciando-se a si mesma como o que ela é, como o sofrimento de um desejo vazio. Na medida, porém, em que, lançada fora de si para aquilo com que se preocupa, é o lá fora daquilo com que se preocupa que a fascina, a fenomenalidade do mundo invade seu olhar, e, segundo a inversão dos conceitos da fenomenologia – inversão ao termo da qual é a Vida que é a Luz, e o mundo trevas –, [208] deve-se dizer: “Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão as trevas!” (Mateus 6,22-23).