SOBRE A SALVAÇÃO DOS RICOS
(P.G. 9, 603-652)
Os que fazem discursos elogiando os ricos devem ser tidos por aduladores, penso eu, pois afetam pagar caro o que não merece agradecimento; e além disto, por ímpios e insidiosos. Ímpios, porque a honra que se deve a Deus — o único perfeito e bom, “de quem tudo provém, por meio de quem tudo existe, para o qual tudo é — prestam-na a homens pecadores e postos sob o juízo de Deus. Insidiosos, porque agem como se já não bastassem as riquezas para desvanecer seus possessores, corrompê-los e desviá-los, como se fossa preciso inebriá-los ainda mais com novos louvores. Levam-nos assim a menosprezar tudo que não sejam as mesmas riquezas, de onde lhes está vindo sua honra.
Como diz o provérbio, ateiam lenha ao fogo, ajuntam luxo ao luxo, acrescentam uma carga à riqueza, novo peso ao peso, quando o melhor seria diminuir o gravame da enfermidade, tantas vezes mortal! Pois é assim que se segue a humilhação ao que antes foi exaltação, conforme a palavra divina.
De minha parte, penso melhor ajudar os ricos com razões e meios que lhes facilitem a salvação. Primeiro, suplicando isso a Deus; segundo, curando suas almas cem a graça do Salvador, iluminando-as e conduzindo-as à posse da verdade. Somente quem chega à verdade, e ao mesmo tempo a traduz nas boas obras, conseguirá o galardão da vida eterna. Ora, a oração, que há de durar até o último dia da vida, pede uma alma robusta e serena, e a ação requer uma disposição boa e constante, que há de estender-se a todos os mandamentos do Salvador.
Apesar disto, talvez não seja tão simples, mas antes complexa, a razão por que a salvação pareça mais difícil aos ricos do que aos pobres. Uns, com efeito, ouvem com simplicidade a palavra do Salvador: “é mais fácil o camelo passar pelo fundo de uma agulha do que o rico entrar no reino dos céus”, e chegam a desesperar de si, como se já não pudessem obter a vida eterna, entregando-se então cada vez mais ao mundo, apegando-se à vida presente como se fosse única, apartando-se cada vez mais do caminho para a outra vida, sem averiguar a quem interpela o Salvador ou de que maneira o impossível para os homens é possível para Deus. Outros entendem corretamente a palavra do Senhor, mas se descuidam das obras salvíficas e não se preparam devidamente para alcançar o que esperam. Refiro-me sempre aos ricos que conhecem o Salvador e sua gloriosa redenção. Não me refiro aos que desconhecem a verdade.
Ora, os que amam a verdade e igualmente a seus irmãos, os que não atacam petulantemente os ricos chamados à fé, nem tampouco os lisonjeiam gananciosamente, convém que primeiro lhes tirem com boas razões todo desespero e lhes expliquem os oráculos do Senhor, os quais não excluem a herança do reino celeste aos que obedecem os mandamentos. Convém, em segundo lugar, recordar-lhes que seu temor é irrazoável e que, se desejarem, o Senhor os acolherá de bom grado. Mas será preciso também iniciá-los misticamente na maneira pela qual, com obras e disposições de espírito, se soergue a esperança, sempre na suposição de que não lhes está fechada a salvação e de que não se lhes abre sem esforço. Se usássemos de uma comparação, diríamos acontecer aqui o mesmo que entre os atletas.
Entre estes, quem desespera de vencer e obter o prêmio já nem se inscreve entre os concorrentes. De outro lado quem tem uma boa esperança, mas não se impõe os devidos exercícios, também fica sem o prêmio e sua esperança falirá.
Semelhantemente, quem possui muitas riquezas da terra não se tenha por excluído dos galardões do Senhor, desde que seja fiel e compreenda a magnificência da bondade de Deus; nem de outro lado espere cingir-se com a coroa da imortalidade se não se exercita e combate, se não se cobre de pó e suor. Submeta-se ao Verbo como ao diretor dos exercícios, a Cristo como ao presidente do certame. O regime alimentar a que se há de sujeitar seja o Novo Testamento do Senhor. Os exercícios, os mandamentos divinos; a boa forma, as disposições interiores: a caridade, a fé, a esperança, o conhecimento da verdade, a moderação, a mansidão, a misericórdia, a modéstia. Desta sorte, quando a trombeta der o sinal da carreira e da saída deste mundo, do estádio desta vida, apresente-se vencedor, com boa consciência, ante o presidente dos jogos, digno de retornar à Pátria, coroado e aclamado pelos anjos.
Que o Salvador, pois, nos conceda expor a verdade salutífera a nossos irmãos, primeiro naquilo que diz respeito à própria esperança, depois no que diz respeito ao que leva a ela. Ele dá a graça aos que precisam e ensina aos que desejam aprender, destrói a ignorância e dissipa o desespero, na maneira mesma como introduz seus discursos sobre os ricos, discursos que são interpretativos de si próprios. Com efeito, nada como ouvir novamente as palavras do Evangelho, as quais nos perturbaram porque as temos escutado de maneira errônea.
Formula-se ao Senhor e Mestre uma pergunta que a ninguém mais conviria senão a ele. Pergunta-se à Vida acerca da vida, ao Salvador sobre a salvação, ao Mestre sobre a síntese de seus ensinamentos, à Verdade sobre a verdade, à Imortalidade sobre a imortalidade, à Palavra sobre a palavra do Pai, ao Perfeito sobre o perfeito descanso, ao Incorrupto sobre a verdadeira incorrupção. Formula-se ao Senhor uma pergunta sobre aquilo mesmo pelo que ele descera ao mundo, e que constituía o objeto de seu ensino: a vida eterna. Ora, como Deus, ele sabia o que ia ser perguntado e qual a resposta que ele próprio, ao interrogar por sua vez, haveria de receber. Quem, mais do que ele, era profeta dos profetas e senhor de todo espírito profético? Quando o chamam bom, faz desta palavra a ocasião para começar o ensinamento, levando o discípulo ao Deus bom, primeiro e único dispensador da vida eterna, da vida que o Filho comunica, recebida do Pai.
Assim, o maior dentre os ensinamentos sobre a vida eterna deve ser imediatamente impresso na alma, a saber: o reconhecimento do Deus eterno, a compreensão de que Deus é o primeiro, o supremo, o único, o bom. O princípio inabalável e fundamental para a vida, é a ciência de Deus, do Deus eterno que nos doa o eterno, do Ser do qual tudo recebe o ser e a permanência no ser. A ignorância de Deus é a morte. O conhecimento de Deus, o relacionamento com ele, seu amor: eis a única coisa que é vida.
A primeira recomendação que Jesus faz a quem busca a verdadeira vida é a de conhecer àquele que ninguém conhece, exceto o Filho e exceto quem recebe a revelação do Filho. Trata-se portanto de conhecer a grandeza do Salvador e a nova graça, a qual sendo dada pelo Filho, supera a dada pelo servo, conforme diz o Apóstolo: “a lei nos foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade por obra de Jesus Cristo”. Realmente, se a lei de Moisés fosse capaz de proporcionar a vida, teria sido inútil a descida do Salvador, sua paixão por nossa causa, seu itinerário percorrido do nascimento ao fim. E inútil teria sido que o jovem rico, após ter observado desde cedo todos os mandamentos, se viesse a prostrar ante outra instância para solicitar o prêmio da vida imortal.
Ele não só cumprira a Lei, mas a cumprira desde a infância. . . Que há de especial se a velhice não se entrega ao pecado? O lutador admirável é o que, desde o verão da existência, se mostra amadurecido como se já vivesse precocemente a idade provecta. Contudo, por grande que fosse tal lutador, estaria bem consciente de que, se quanto à justiça nada lhe faltava, quanto à vida tudo lhe faltava. É então pede-a ao único capaz de concedê-la. Quanto à Lei, estava seguro desde muito tempo; ei-lo porém súplice ante o Filho de Deus. De uma fé passa a outra. Como alguém que não se sente seguro na barca da Lei, como o viajante que navega, ele busca o Salvador.
Jesus não o repreende, por não ter de fato cumprido toda a Lei, antes o ama e felicita por seguir fielmente a instrução recebida. Entretanto, no que concerne a vida eterna, declara-o imperfeito, por não ter realizado o que a perfeição requer. Operário da Lei, sem dúvida, mas ainda deficiente quanto à vida eterna. Ninguém contesta que a Lei era boa, pois “o mandamento é santo”, no sentido de uma função de pedagogia e de instrução prévia, a caminhar para a culminância da lei de Jesus e para a graça. Mas a plenitude da Lei é Cristo, que justifica todo o que crê. E Jesus, não sendo escravo, não faz escravos mas filhos, irmãos, co-herdeiros seus, todos os que cumprem a vontade de seu Pai.
“Se queres ser perfeito”: logo, ainda não o era, pois o perfeito não se aperfeiçoa. E disse divinamente “se queres”, indicando a faculdade de livre arbítrio daquele com quem falava. Ao homem, enquanto livre, cabia a escolha; a Deus cabe dar, como Senhor e Juiz que é. Ele dá aos que querem, se esforçam e pedem, a fim de que sua salvação brote deles mesmos. Deus não força a ninguém, a violência lhe é inimiga. Ele atende aos que buscam, dá aos que pedem, abre aos que batem à porta.
Assim, se queres, se realmente, sem te enganares a ti mesmo, queres obter o que te falta, “uma coisa te falta”, a única coisa que permanece, aquilo que é bom e está acima da Lei, o próprio dos que vivem.
Infelizmente o jovem que desde a infância observava a Lei, e tão alto proclama sua observância, não foi capaz de comprar a única coisa própria do Salvador, para assim chegar à desejada vida eterna. E retirou-se triste, pesaroso pelo mandamento daquela vida que viera suplicar.
Ora, que o moveu à fuga e o fez deixar o Mestre, deixar a súplica, a esperança e os esforços já iniciados? A palavra “vende tudo o que tens”! E que quer dizer ela? Não o que levianamente pensam alguns. O Senhor não nos manda lançarmos fora os bens e nos afastarmos de toda riqueza. O que ele deseja é desterrarmos da alma os vãos juízes sobre as riquezas, a cobiça desenfreada, a avareza, as solicitudes, os espinhos do século, que sufocam a semente da verdadeira vida.
Não é grande façanha, digna de emulação, carecer dos bens mas não ter a tendência para a vida eterna. Se o caso fosse este, os que nada possuem, os destituídos de todo auxílio, que diariamente passam mendigando peles caminhos, sem conhecimento de Deus e de sua justiça, seriam, pelo simples fato da extrema indigência, os mais felizes e amados por Deus, os únicos que alcançariam a vida eterna. Aliás, nem é novidade o renunciar às riquezas em prol dos necessitados e pobres, pois também isto foi feito por muitos antes da vinda do Salvador: por uns, com o fim de se dedicarem às letras e por amor da sabedoria morta; per outros, com o fim de obtenção da fama e da vã glória: Anaxágoras, Demócrito, Crates. . .
Portanto, que diz o Senhor como coisa nova, própria de Deus, como única coisa que vivifica e difere do que não salvou antes os homens? que nos indica e ensina o novo homem, o Filho de Deus? Não nos manda o que simplesmente dá na vista e outros já fizeram, mas algo maior, mais divino e mais perfeito, aí significado, a saber: desnudarmos a alma das paixões, arrancarmos e projetarmos longe o que é alheio ao espírito. Eis c ensinamento próprio do crente, eis a doutrina digna do Salvador! Assim, cs que antes do Senhor depreciaram os bens exteriores, sem dúvida abandonaram e perderam suas riquezas, mas as paixões de suas almas, penso eu que ainda as aumentaram. Porque, imaginando terem feito algo de sobre-humano, vieram a cair na soberba, na petulância, na vã glória e no menosprezo dos demais.
Como então haveria o Salvador de recomendar aos que irão viver para sempre algo nocivo à vida, que ele santamente promete? Pode acontecer que alguém, embora renunciando ao peso dos bens e riquezas, mantenha o desejo de tudo isso na alma. Desprendeu-se dos bens mas ao sentir falta deles e ao desejá-los de novo, está duplamente atormentado: por tê-los deixado e por desejá-los. Porque na verdade é impossível carecer do necessário e não estar preocupado para obtê-lo; mas com isto o espírito se desvia das coisas mais importantes.
Quão mais proveitoso é o contrário! Possuir, de um lado, o suficiente, não ter que angustiar-se para procurá-lo, e de outro lado poder ajudar aos que precisam. Se ninguém tivesse nada, como haveria comunhão de bens entre os homens? Não é claro que essa doutrina do abandono de tudo iria contrariar outros ensinamentos do Senhor? “Fazei amigos com as riquezas da iniqüidade, a fim de que quando precisardes vos recebam nos eternos tabernáculos”. “Tende tesouros nos céus, onde as traças e a ferrugem não os consomem nem os ladrões podem roubar”. Como dar de comer ao que tem fome, de beber ao que tem sede, vestir o nu, acolher o desamparado — coisas todas que devem ser feitas sob a ameaça do fogo eterno e das trevas exteriores — se não se tem com que fazê-lo?
Ademais, o próprio Senhor, hospedando-se na casa de Zaqueu e Mateus, que eram ricos e publicanos, não lhes ordena desfazerem-se das riquezas, mas — impondo um justo juízo e rechaçando a injustiça — termina por dizer: “hoje veio a salvação a esta casa, porque também este homem é filho de Abraão”. Elogiava assim o uso das riquezas, enquanto mandava que servissem à comunicação — a dar de beber ao que tem sede, de comer ao faminto, à acolhida do peregrino, à vestição do nu. Se não é possível obviar a tais necessidades sem haveres, e se o Senhor ordena o despojamento dos haveres, está então mandando que se dê e não se dê, se dê de comer e não se dê de comer, etc, o que seria absurdo pensar.
Portanto, não há que abandonar os bens capazes de ser úteis a nosso próximo. Aliás as posses se chamam “bens” porque com elas se pode fazer o bem, e foram previstas por Deus em função da utilidade dos homens. São coisas que aí estão, destinadas, como matéria ou instrumento, ao bom uso nas mãos de quem sabe o que é um instrumento. Se se usa o instrumento com arte, ele vale; do contrário, não presta, embora sem culpa disto.
Instrumento assim é a riqueza. Se usada corretamente, presta serviço à justiça. Se usada incorretamente, serve à injustiça. Por natureza está destinada a servir, não a mandar. Não há que acusa-a do que não lhe cabe, isto é, do não ser nem boa nem má. A riqueza não tem culpa. Toda a responsabilidade cabe ao que pode usá-la bem ou mal, conforme a escolha que estabelece, isto é, segundo a mente e o juízo do homem, ser livre e capaz de manejar per próprio arbítrio o que recebe em mãos. O que importa destruir não são as riquezas, mas as paixões da alma que impedem o bom uso das mesmas. Tornado bom e nobre, o homem pode empregá-las bem e generosamente. Assim, a renúncia a tudo que possuímos, a venda de todas as posses, há de ser isto entendido no sentido das paixões da alma.