CASSIANO — CONFERÊNCIAS
SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE MOISÉS — DA DISCRIÇÃO
II. O que é que só a discrição aproveita ao monge. Exposição do abade Antão sobre isto.
Lembro-me de que, outrora, nos anos da minha infância na região de Tebaida, onde morava o bem-aventurado Antão, alguns dos antigos o procuravam para inquerir da perfeição.
A conferência durou desde a hora das Vésperas até ao amanhecer, e essa questão consumiu a maior parte da noite. Longamente se queria saber qual a virtude ou observância capaz de guardar o monge sempre ao abrigo dos laços e ilusões do demônio e de fazê-lo galgar em linha reta e de passo firme as alturas da perfeição.
Cada um dava a sua opinião, conforme o seu próprio entendimento. Alguns colocavam isto na aplicação dos jejuns e das vigílias, achando que assim a alma liberada, conquistando a pureza do coração e o corpo, pode mais facilmente unir-se a Deus.
Outros o punham na renúncia de todas as coisas, porque uma alma, se inteiramente se despojasse de tudo, livre doravante de quaisquer laços, chegaria mais desembaraçada até a Deus. Outros julgavam de necessidade de anacorese, isto é, o retiro nas profundezas do deserto, onde se possa falar a Deus mais familiarmente e unir-se a ele de maneira mais particular.
Alguns, finalmente, se definiam pela prática da caridade, isto é, os serviços da hospitalidade, aos quais o Senhor no Evangelho prometeria, de modo como que mais especial, dar o reino dos céus: “Vinde, abençoados do meu Pai, possuí o reino que vos foi preparado desde a origem do mundo. Pois tive fome e me deste de comer, tive sede e me destes de beber” (Mt 25,34-35).
E assim, enquanto eles atribuíam a virtudes diversas o poder de abrir o caminho mais certo para Deus, e gastavam nessa indagação a maior parte da noite, afinal rematou o bem-aventurado Antão: Tudo que dissestes é necessário e útil a quem tem sede de Deus e arde por chegar até a ele. Mas atribuir a essas práticas o dom principal, nem as experiências nem as quedas de muitos o permitem dizer.
Quantas vezes, com efeito, vimos alguns entregar-se aos mais duros jejuns e vigílias, retirar-se à solidão a modo de causar pasmo, lançar-se a tal despojamento de bens que não toleravam guardar para si nem os víveres de um dia, e até mesmo uma só moeda, ministrar os serviços de hospitalidade com a maior dedicação, e, no entanto, de repente, ei-los de tal modo enganados, que não puderam levar a termo, com o êxito esperado, a obra empreendida, concluindo por um fim detestável o seu grande fervor e vida tão louvável.
Por este modo, se indagarmos com exatidão a causa do seu engano e da sua queda, poderemos descobrir com clareza o que é capaz principalmente de nos levar a Deus. Na verdade, apesar de superabundarem neles as obras das citadas virtudes, bastou que lhes faltasse a discrição, para que não pudessem perseverar até ao fim.
Não se consegue descobrir outra causa para as suas quedas, senão que, à míngua de formação recebida dos antigos, não puderam adquirir a regra da discrição. É ela que, deixando de lado os dois excessos contrários, ensina o monge a andar na estrada real. Nem o deixa desviar-se à direita, num fervor excessivo de virtudes com que presume tolamente ir além dos limites da justa temperança; nem lhe permite, quando seduzido pelo relaxamento, dobrar à esquerda e descer para os vícios, afrouxando-se na tibieza da alma, sob pretexto de governar o corpo.
É esta a discrição, que o Evangelho chama de olho e lâmpada do corpo, conforme a palavra do Salvador: “A lâmpada do teu corpo é o teu olho; se o teu olho é simples, todo o teu corpo será luminoso. Se, porém, teu olho é mau, todo o teu corpo será tenebroso” (Mt 6,22-23). Isto porque, discernindo todos os pensamentos e atos do homem, ela examina atentamente e percorre com cuidado o que devemos fazer.
Se, pois, esse olho for mau, isto é, desprovido de ciência e de juízo seguro, ou iludido pelo erro e a presunção, ele fará tenebroso todo o nosso corpo, quer dizer, escurecerá em nós a ponta aguda do espírito e os nossos atos, na cegueira dos vícios e nas trevas das paixões. “Se a luz que está em ti são trevas, quão grandes serão estas!” diz o Senhor (id 23). A ninguém, sem dúvida, escapará que, se o nosso coração julga em erro e está envolto na noite da ignorância, os nossos pensamentos e obras, que derivam de tal deliberação, serão cobertos de trevas dos pecados.