CASSIANO — CONFERÊNCIAS
SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE MOISÉS — DA DISCRIÇÃO
XII. Confissão da vergonha que nos faria ruborizados ao revelar aos mais antigos os nossos pensamentos
A ocasião de uma funesta vergonha que nos faz esconder com empenho os nossos maus pensamentos tem por causa principal fatos como este que viemos a saber. É o caso de certo monge na Síria, tido como o primeiro entre os anciões. A um irmão que lhe revelava em humilde confissão os seus pensamentos, logo em seguida ele se tomou de indignação e os censurou gravemente. Daí acontece que os reprimimos em nós e ruborizamos de manifestar aos anciãos, ficando impotentes para obter seus remédios.
XIII. Resposta sobre o dever de calcar a vergonha e sobre o perigo da falta de compaixão.
Moisés: Assim como os jovens não são todos igualmente fervorosos ou bem formados nos melhores ensinamentos e costumes, também os anciãos não têm todos o mesmo grau de perfeição e de virtude. A riqueza dos anciãos não está nos cabelos brancos, mas no empenho da juventude e nos frutos dos trabalhos passados. “O que não ajuntaste na tua juventude — diz a Escritura — como o encontrarás na velhice” (Sir 25,5). “A velhice venerável não está na longa duração; o que é branco são os sentimentos do homem; a idade da velhice é uma vida imaculada” (Sab 4,8-9).
Assim sendo, não é a todos os velhos, só porque tenham branca a cabeça e longeva a vida, que devemos seguir os passos e acolher as lições e os conselhos, mas sim, aqueles que soubermos que em sua juventude levaram uma vida digna de louvor e de máximo reconhecimento, e se formaram nas tradições dos maiores e não em suas próprias presunções.
São muitos ou, o que mais triste, é o maior número que envelheceram na tibieza e no relaxamento que conceberam desde a sua adolescência e conquistaram autoridade não pela madureza da vida, mas pelo número de anos. A eles cabe muito bem a censura do Senhor pelo profeta: “Os estranhos devoraram a sua força, e ele não soube; está coberto de cabelos brancos, mas o ignora” (Os 7,9).
Esses, digo eu, o que os promoveu como exemplo para os mais novos não foi a probidade da vida nem o rigor louvável e digno de imitação com quem vivem o seu propósito, mas somente a idade avançada.
O astucioso inimigo, apresentando a sua cabeça branca como prova antecipada de autoridade para iludir os mais jovens, apressa-se, com sua capciosa habilidade, a fazer cair e enganar, mediante os exemplos daqueles, até mesmo os que são movidos a tomar o caminho da perfeição, por conselhos de outros ou sua própria inspiração. Numa palavra, ele os conduz, pela doutrina e modo de vida daqueles, a uma frieza daninha ou a mortal desespero.
Para vos dar um exemplo, vou contar um fato real , que vos pode servir de útil instrução. Não direi, porém, o nome do autor, para não agir como aquele que publicou as faltas que o irmão lhe revelara.
A um ancião muito bem conhecido por mim, encaminhou se, um dia, certo jovem monge, não dos menos fervorosos, em busca de progresso e de cura a seus males. Com simplicidade, ele confessou-lhe que era atormentado pelo aguilhão da carne e pelo espírito de fornicação. Acreditava que pela oração do ancião encontraria consolação aos seus trabalhos e remédio às suas feridas.
Mas não. O ancião passou a lançar-lhe em rosto palavras amargas, chamando-o em voz alta de miserável e indigno, e dizendo que não poderia ser chamado de monge quem se mostrava sensível a esse gênero de vício e de concupiscência.
E tanto o feriu com suas repreensões, que, mergulhado em profundo desespero e abatido por uma tristeza mortal, acabou deixando a cela.
Deprimido em tal aflição, já começava a cogitar não mais no remédio do seu mal, mas na satisfação da sua concupiscência.
Enquanto rolava isto em seu coração, eis que encontra o abade Apolo, o mais respeitável dos antigos. Ao ver o abatimento que transparecia em sua face, este percebeu o sofrimento e a violência do combate que se desenrolava em silêncio naquele coração. Pergunta-lhe a causa de tão grande pertubação, fala-lhe com doçura, mas ele não conseguia dar a menor resposta. O ancião, sentindo mais e mais que não era sem motivo que ele queria cobrir pelo silêncio a causa de tanta tristeza, começou a perguntar-lhe com maior insistência as razões dessa dor escondida.
Apertado por tal insistência, ele, afinal, confessa tudo. Já que, segundo a opinião daquele ancião, não pode ser monge nem é capaz de refrear os estímulos da carne e de conseguir um remédio à tentação, ele se dirige a aldeia com a intenção de casar-se e, abandonando o mosteiro, voltar ao mundo.
O ancião começa, então, a consolá-lo com brandura e carinho. Assegura-lhe que ele próprio é cada dia agitado pelo aguilhão e os ardores das mesmas tentações. Não deve ele, portanto, cair no desespero nem se admirar da violência dos ataques, que mais do que por nosso empenho são vencidos pela graça e misericórdia do Senhor. Pede-lhe, assim, tréguas de um só dia e roga-lhe que volte a sua cela, enquanto ele mesmo se encaminha a toda pressa para a cabana do referido ancião.
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Ao aproximar-se dela, pôs-se a orar com lágrimas, levantando os braços: Senhor, só vos sois o juiz bondoso e o remédio secreto das capacidades ocultas de cada um e das fraquezas humanas; fazei passar a tentação daquele jovem para este ancião, a fim de que aprenda, ao menos na sua velhice, a condescender às fraquezas dos aflitos e a ser compassivo para com a fragilidade dos mais novos.
Mal terminou, gemendo, esta oração, viu um horrendo etíope de pé diante da cela do ancião e dirigindo contra ele os seus dardos. Atingido logo por eles, ele sai da cela e se põe a correr para todos os lados, como um ébrio ou como alguém fora de si. Ele entra e sai e, não podendo ficar nela, toma, apressado, o mesmo caminho por onde saíra aquele jovem.
O abade Apolo o vê como um demente agitado como que pelas Fúrias. Ele compreendeu que o dardo inflamado que vira na mão do demônio penetrara-lhe no coração e produzia nele, como chamas intoleráveis, aquela confusão da mente e a perturbação dos seus sentidos.
Aproximou-se, então, e lhe disse: para onde te apressas, e qual é a causa que te faz esquecer a gravidade de ancião e te compele a agitar-te e a correr para outro como um menino?
Confuso por causa das acusações da sua consciência e da vergonhosa agitação em que se encontra, ele acredita que o ardor da sua alma é percebido e que os segredos do seu coração são manifestados ao ancião. Por isto, não ousou responder à sua pergunta.
Então este lhe disse: Volta para a tua cela e compreende afinal que foste até agora ignorado ou desprezado pelo demônio e não contado por ele no número daqueles cujos progressos e esforços o instigam continuamente a entrar em choque e combater. Não pudeste, depois de tantos anos nesta profissão, já não digo rechaçar, mas nem mesmo retardar por um só dia o único dardo que ele te lançou.
O Senhor permitiu que fosse ferido, a fim de que, ao menos na velhice, por teu próprio exemplo e experiência, aprendesses a ter compaixão das fraquezas alheias e a condescender a fragilidade dos mais novos. Revendo um jovem em luta contra os ataques do demônio, não só deixaste aliviá-lo com tua consolação, mas ainda o entregaste em desespero nas mãos do inimigo, para ser por ele tristemente devorado, enquanto dependia de ti.
O inimigo, que até agora desdenhou te atacar, não o teria, sem dúvida, agredido com tanta veemência, se, prevendo com inveja o seu futuro progresso, não corresse a impedir por antecipação, com seus dardos de fogo, aquela virtude que percebia nele existir. Com toda certeza, ele o considerou mais forte, pois julgou útil atacá-lo com tanta violência.
Aprende, pois, do teu próprio exemplo, a compadecer-te dos que estão em trabalho, e a não aterrorizar de mortal desespero, nem exasperar com palavras duríssimas os que estão em perigo.
Ao contrario, aprende a confortá-los com consolações brandas e indulgentes. Assim, seguirás o preceito do sábio Salomão: “Não deixes de livrar os que são arrastados à morte, nem de salvar os que estão sendo exterminados” (Prov 24,11). A exemplo do nosso Salvador, não esmagues o caniço já quebrado, nem apagues a mecha que fumega (cf. Mt 12,30). Aprende a rogar ao Senhor aquela graça, na qual poderás cantar com toda a confiança e na verdade:”O Senhor me deu uma língua instruída, para que eu saiba sustentar pela palavra aquele que está sucumbido” (Is 50,4).
Ninguém, com efeito, poderia resistir às ciladas do inimigo ou apagar ou reprimir os ardores carnais que nos queimam com um fogo de certo modo alimentado pela natureza, se a graça de Deus não viesse em ajuda a nossa fragilidade e não a protegesse e fortificasse.
Por isto, chegando ao fim esta obra divina de salvação, pela qual o Senhor quis livrar aquele jovem de ataques tão violentos e perniciosos e te ensinar os sentimentos de compaixão, vamos juntos implorar o mesmo Senhor que ponha fim ao flagelo que ele se dignou te infligir, para o teu bem. “Pois é ele que faz doer e logo medica; fere e sua mão faz sarar” (Jo 5,18). Ele humilha e eleva, faz morrer e dá a vida, lança nos infernos e de lá retira” (I R 2,6-7). Que ele apague pelo orvalho abundante do seu Espírito, os dardos ardentes do demônio que a meu pedido permitiu que te ferissem.
Bastou somente esta oração do ancião, para que o Senhor retirasse a tentação tão prontamente como a tinha permitido. Mas ele ensinou por tão evidente experiência que devemos não só abster-nos de censurar alguém que nos revela suas faltas, mas nem mesmo desprezas seus sofrimentos, ainda que leves.
Que a incompetência ou leviandade de um ou de alguns anciãos, cujas cabeça branca o inimigo usa para enganar os mais novos, de modo nenhum vos faça sair ou desviar daquele caminho de salvação e dos ensinamentos dos maiores, de que antes vos falamos.
Mas devemos tudo manifestar aos antigos, sem qualquer encobrimento de vergonha, e receber deles, com a maior confiança, os remédios de nossas feridas e os exemplos de vida monástica. Com isto encontraremos ajuda e êxito, se nada tentarmos empreender por nosso próprio juízo e presunção.