CASSIANO — CONFERÊNCIAS
A SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE MOISÉS — DA DISCRIÇÃO
I. Proêmio do abade Moisés sobre a graça da discrição.
Saboreado aquele sono da madrugada, ao percebermos o raiar do dia, começamos, com alegria, a reclamar a palestra prometida. O bem-aventurado Moisés assim principiou:
Vejo-vos inflamados de tão grande desejo, que nem mesmo acreditaria ter servido a refazer o vosso corpo a brevíssima fração de repouso que eu subtraí à conferência espiritual. Mas, ao considerar vosso fervor, maior solicitude recai sobre mim. Ao pagar minha dívida, devo empregar tanto maior zelo, quanto é maior a diligência com que a reclamais. Assim reza aquela sentença: “Se te assentas à mesa dum grande, procura reconhecer sabiamente o que te servem; e usa a tua mão, sabendo que igual festim deverás preparar” (Prov 23,1-2).
Dispondo-nos, pois, a falar da discrição e da sua virtude, da qual principiávamos a tratar quando interrompemos a conferência da noite, cremos oportuno assinalar a sua excelência, começando pelas sentenças dos Pais.
Depois de mostrar o que dela pensaram ou disseram os nossos maiores, e de citar a queda de diversas pessoas, antigas e recentes, que caíram em erro funesto porque a tiveram de menos, trataremos, conforme pudermos, das suas utilidades e benefícios. Depois disto, considerando o valor dos seus méritos e graça, poderemos instruir-nos com maior fruto sobre a maneira de obter e aperfeiçoar a discrição.
Ela não é, com efeito, uma virtude medíocre, nem pode ser alcançada ao acaso pela humana indústria, a não ser como um dom da largueza divina. O Apóstolo, alias, a enumera entre os mais nobres dons do Espírito Santo: “A um é dado pelo Espírito uma palavra de sabedoria; a outro uma palavra de ciência segundo o mesmo Espírito; a outro a fé, no mesmo Espírito; a outro a graça das curas, num só e mesmo Espírito” ( 1 Cor 12,8-9). E pouco adiante: “A outro, o discernimento dos espíritos” (id 10). Depois, completada a lista dos carismas espirituais, ele acrescenta: “Tudo isto é um só e mesmo Espírito que o produz, distribuindo seus dons a cada um, como ele quer” (id 11).
Vedes, pois, que não é terrestre nem pequeno o dom da discrição, mas uma dádiva muito grande da graça divina. Se o monge não procura obtê-la com toda a força da sua vontade nem em si com seguro tino a discrição dos espíritos, ele inevitavelmente, como alguém que anda errante numa noite cega e trevas fechadas, não só cairá em funestos buracos e precipícios, mas também, mesmo em caminhos planos e retos, tropeçará com frequência.
SEGUE: II-2; II-3; II-4; II-5; II-6; II-7; II-8; II-9; II-10; II-11; II-12; II-13; II-14; II-15; II-16; II-17; II-18; II-19; II-20; II-21; II-22; II-23; II-24; II-25; II-26