Cassiano Conferencias I-9

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

PRIMEIRA CONFERENCIA DO ABADE MOISÉS — DA META E DO FIM DO MONGE

IX. Pergunta-se como é que não permanece com o homem a ação das virtudes

Ficamos muito perturbados com esta palavra: “Pois’ que, dissemos nós, então o labor dos jejuns, a solicitude da leitura, as obras de misericórdia, de justiça, de piedade e afeição humana, nos serão tiradas e não permanecerão com os seus autores? Mas, sobretudo, não foi o próprio Senhor que prometeu o reino dos céus em retribuição a tais obras, ao dizer: “Vinde, benditos do meu Pai, entrai na posse do reino que está preparado para vós desde a origem do mundo. Pois tive fome, e me deste de comer; tive sede, e me deste de beber” (Mt 25, 34-35), e o resto? como enfim, será tirado o que introduz no reino os seus praticantes?

X. Resposta, dizendo que não é a recompensa, mas o ato das virtudes que cessará

Moisés: Eu não disse que o prêmio da boa obra nos deva ser tirado, porque o mesmo Senhor declara: “Aquele que der a um desses pequeninos um cálice de água fresca, porque é um dos meus discípulos, em verdade vos digo, não perderá a sua recompensa” (Mt 10,42). Mas, sim, que lhe será tirada a ação, atualmente exigida pela necessidade corporal, pelos ataques da carne ou pelas desigualdades deste mundo.

A assiduidade da leitura e as aflições do jejum para purificar o coração e castigar a carne, só têm utilidade na vida presente, enquanto “a carne tem concupiscência contra o espírito” (Gal 5,17). Vemos, alias, que não raro esse exercício já nesta vida cessam para aqueles que estão esgotados pelo excessivo trabalho, ou pela doença e a velhice, e não podem ser perpetuamente praticados.

Quanto mais cessarão no futuro, quando “este corpo corruptível se revestir de corruptibilidade” (1 Cor 15,53), e este corpo agora “animal” ressuscita “espiritual” (1 Cor 15,44), e a carne começará a não mais ter concupiscência contra o espírito?

Sobre isto, igualmente, o Apóstolo se pronuncia com clareza: “O exercício corporal tem utilidade limitada: mas a piedade (sem dúvida, e a caridade que se deve entender), é util para tudo, pois ela tem a promessa da vida presente e futura” (1 Tim 4,8).

Dizer que uma tem utilidade limitada, é declarar claramente que ela nem se pratica todo tempo, nem pode por si só conferir a quem se esforça, a suma perfeição. O limite, com efeito, pode referir-se as duas coisas, vale dizer, tanto à brevidade do tempo, já que o exercício corporal não pode ser coeterno ao homem nem na vida presente nem na futura; como, igualmente, a pouca utilidade obtida pelos exercícios corporais, porque a maceração corporal produz um certo começo de progresso, mas não a própria perfeição da caridade, e é esta que tem a promessa da vida atual e futura.

Julgamos, pois, necessário o exercício dessas obras, porque sem elas e impossível subir ao cume da caridade.

As obras de caridade e misericórdia, como as chamais, são também necessárias neste tempo, enquanto ainda reina a desigualdade. Mas dessas obras nem mesmo seria de esperar a sua prática, se não houvesse, aqui em baixo, um número muito grande de pobres, necessitados e enfermos, produzido pela injustiça dos homens, daqueles, quero dizer, que retiveram para seu uso exclusivo, sem contudo, realmente servir-se delas, as coisas que o criador comum concedeu a todos.

Enquanto, pois, grassar neste mundo uma tal desigualdade, aquela ação tão necessária aproveitará a quem a exercer, dando ao bom coração e benevolência fraterna o prêmio da herança eterna. Mas no século futuro, reinando a igualdade, ela cessará. Já não mais haverá ali diferenças que exijam a sua prática, mas todos passarão da multiplicidade da ação à caridade de Deus e a contemplação das coisas divinas, numa perpétua pureza de coração.

É a isto que, deste este século, se dedicam com todas as forças, aqueles que só querem cuidar da ciência e da purificação da sua mente. Consagrando-se, enquanto se acham na condição carnal e corruptível, ao ofício em que haverão de permanecer depois de a ter deixado, eles atingem aquela promessa ao Senhor, nosso Salvador, que diz: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).