Cassiano Conferencias I-8

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

PRIMEIRA CONFERENCIA DO ABADE MOISÉS — DA META E DO FIM DO MONGE

VIII. O nosso principal esforço para a contemplação das coisas divinas e o exemplo de Maria e Marta

Este, portanto, deve ser para nós o principal esforço, esta a invariável intenção do coração para que a mente sempre esteja fixa em Deus e nas coisas divinas. Tudo que disto se afasta, mesmo que seja grande, deve ser julgado secundário ou mesmo ínfimo, ou por certo nocivo. De modo muito belo, o Evangelho traça uma figura deste espírito e deste modo de agir, no episodio de Maria e Marta.

Enquanto Marta prestava um serviço absolutamente santo, pois era ao próprio Senhor e a seus discípulos que ela ministrava, e Maria, somente atenta à doutrina espiritual, estava fixa aos pés de Jesus, que ela, beijando, ungia com o perfume duma boa confissão, e ela a preferida pelo Senhor, por ter escolhido a melhor parte, e uma parte que não lhe podia ser tirada.

Marta, com efeito, toda ocupada nos piedosos cuidados do seu serviço doméstico, vendo-se incapaz de cumpri-lo sozinha, pede ao Senhor a ajuda da irmã: “Não te importas que minha irmã me deixe servir sozinha? dize-lhe, pois, que me ajude” (Lc 10,40). Não era a uma obra vil, mas a um louvável ministério, que ela chamava Maria. E, no entanto, que resposta ouviu do Senhor? “Marta, Marta, estás preocupada e te perturbas por muitas coisas; não há necessidade senão de poucas, e até mesmo uma só basta. Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada” (Lc id.,41-42).

Vedes, portanto, que o Senhor colocou o bem principal só na “theoria”, isto é, na contemplação divina. Segue-se que as outras virtudes, ainda que as proclamemos necessárias e úteis e boas, nós a julgamos de segundo grau, porque todas são praticadas para a obtenção desta só. Dizendo o Senhor: “Estás preocupada e te perturbas por muitas coisas: não há necessidade senão de poucas e até mesmo uma só basta”, ele colocou o sumo bem, não na ação, embora louvável e abundante de frutos, mas na contemplação dele mesmo, que é, na verdade, simples e una. Ele afirmou que poucas coisas são necessárias para a perfeita bem-aventurança, isto é, aquela “theoria” que começa pela consideração do exemplo de uns poucos santos .

Elevando-se desta contemplação, aquele que ainda se acha em progresso, chegará também a esse único assim chamado, isto é, a visão de Deus só, com a sua graça. Ultrapassando, com efeito, os atos e ministérios maravilhosos dos santos, ele já passa a nutrir-se da beleza e do conhecimento de Deus. “Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada”.

é preciso considerar isto mais cuidadosamente. Quando ele disse: “Maria escolheu a boa parte”, embora se cale a respeito de Marta e não pareça censurá-la, ao louvar aquela, declara esta inferior. E quando diz: “Que não lhe será tirada”, mostra que desta pode-se tirar a sua parte (um serviço corporal não pode perseverar sempre com o homem), ao passo que a ocupação de Maria, esta, como ele ensina, em tempo algum pode findar.