CASSIANO — CONFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA XVI — PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE JOSÉ SOBRE A AMIZADE
VI. Por que modos pode a amizade manter-se inviolável.
O primeiro fundamento de uma amizade verdadeira é o desprezo dos bens mundanos e o desdém por tudo que temos. Seria, com efeito, extremamente injusto e mesmo ímpio, se depois de termos renunciado ao mundo e a tudo que nele há, preferíssimos ao afeto precioso de um irmão os trastes vis que nos restam.
O segundo é que corte cada um as suas próprias vontades, evitando, deste modo, que, à força de julgar-se sábio e competente, prefira a sua opinião à dos outros.
O terceiro ponto consiste em saber que tudo, mesmo o que se estima útil e necessário, deve ser preterido em favor do bem da caridade e da paz.
O quarto é crer que não devemos, em hipótese nenhuma, ceder à cólera, por qualquer que seja o motivo, justo ou injusto.
Em quinto lugar, importa que se deseje tratar a ira que algum irmão, mesmo sem motivo, concebeu contra nós, do mesmo modo que fazemos com a nossa própria cólera. Pois sabemos que a tristeza de outrem nos é tão perniciosa, como se nós mesmos nos irritássemos contra alguém, a não ser que procuremos, enquanto possível, arredá-la da sua alma.
Finalmente — e isto é a morte de todos os vícios — creiamos que podemos, cada dia, deixar este mundo.
Esta convicção não permitirá que reste em nosso coração tristeza alguma. Mais ainda, ela reprimirá todos os movimentos de concupiscência e de vícios.
Todo aquele que guardar esses princípios, estará livre de sentir ou de causar a amargura da cólera ou da discórdia. Falhando os mesmos, o inimigo da caridade vem logo lançar no coração dos amigos o insidioso veneno da tristeza. E assim, é inevitável que as repetidas disputas façam resfriar, pouco a pouco, a amizade, até que, enfim, se completa a ruptura entre corações desde muito feridos.
Quem, ao contrário, toma o caminho que dissemos, como poderá jamais separar-se do amigo, se, nada reivindicando como próprio, corta pela raiz a origem dos litígios, que nascem geralmente de pequenas coisas e de objetos desprovidos de valor?
Com toda a sua força, ele guarda o que lemos nos Atos dos Apóstolos sobre a unidade reinante entre os fiéis: “A multidão dos crentes tinha um só coração e uma, só alma; ninguém dizia seu o que ele possuía mas tudo era comum entre eles” (At. 4,3).
Como poderiam surgir sementes de discórdia em alguém que, servindo não à sua, mas à vontade do irmão, se torna imitador do seu Senhor e Criador, que assim fala, em nome da humanidade que assumiu: “Não vim fazer a minha vontade, mas a daquele que me enviou”? (Jo 6,38).
Como acenderia a fogueira da disputa aquele que deciciu confiar mais na apreciação do irmão do que em seu próprio juízo, quando está em jogo o seu modo de entender as.coisas? Aprovando ou reprovando, segundo o juízo do outro, as suas próprias conclusões, ele realiza, pela humildade de um coração cheio de afeto, a palavra do Evangelho: “Não como eu quero, mas como tu o queres” (Mt 26,39).
Que motivo terá para permitir algo que entristeça um irmão, aquele que não considera nada mais precioso do que o bem da paz? Ele não perde a memória dessa palavra do Senhor: “É nisto que todos reconhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). Esse amor, o Cristo quis que seja o sinal pelo qual se reconheça neste mundo o rebanho das suas ovelhas, a marca, por assim dizer, distintiva que as distinga do resto dos homens.
Por que, então, permitira que se acolha em si ou permaneça em outro o ranço da tristeza? Não considera ele, por acaso, como princípio absoluto, que a cólera, perniciosa como ela é e ilícita, não pode ter justas causas? e, ainda, que é tão impossível orar, se ele se irrita contra o irmão, como se este se irrita contra si? De coração humilde, na verdade, ele guarda esta palavra do Senhor, nosso Salvador: “Se, ao apresentares a tua oferenda ao altar, te recordas de que teu irmão tem algo contra ti, deixa ali a tua oferenda e vai primeiro te reconciliar com ele; depois, vem e apresenta a tua oferta” (Mt 5, 23-24).
De nada servirá, com efeito, afirmar que não tens ira, e crer que observas este mandamento: “O sol não se ponha sobre a tua cólera” (Ef 4,26) e este outro: “Quem se encoleriza contra o seu irmão, é réu do juízo” (Mt 5,22), se, ao mesmo tempo, desprezas, de coração duro, a tristeza do próximo, quando podes trazer-lhe alívio com a tua doçura.
Incorres do mesmo modo na censura de faltar ao preceito do Senhor, pois aquele que disse que não deves irar-te contra o teu irmão, também disse que não deves desprezar a sua tristeza. Pois não importa, diante de Deus “que deseja a salvação de todos os homens” (1 Tim 2,4), se é a ti mesmo ou a um outro que pões a perder. Para Deus é o mesmo prejuízo, quem quer que seja que se perde.
De outro lado, aquele que se delicia com a perdição de todos, aufere o mesmo ganho, seja pela tua, seja pela morte do teu irmão.
Finalmente, como poderia guardar contra o seu irmão a mais leve mágua, quem acredita que pode cada dia e até mesmo nesse instante emigrar do século presente?