Cassiano Collatio XVI-3

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

CONFERÊNCIA XVI — PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE JOSÉ SOBRE A AMIZADE

III. Donde vem uma amizade indissolúvel

Entre todas as espécies de amizade, só uma é indissolúvel. É aquela que une não pelo favor de uma recomendação, nem pela grandeza dos serviços ou benefícios, nem por qualquer forma de contrato ou pela força da natureza, mas somente pela semelhança da virtude.

Só esta, digo-lhes eu, jamais se rompe por qualquer acidente, nem a distância nem o tempo a podem desunir, e nem mesmo a morte é capaz de rasgar. É a verdadeira e indissolúvel dileção, que cresce com a perfeição e a virtude geminadas dos amigos, e cuja aliança, uma vez formada, não é quebrada nem pela diversidade dos desejos, nem pelo conflito das vontades em luta.

De resto, conhecemos também a muitos que, depois de firmados nesta profissão, não puderam conservar sempre sem ruptura uma amizade muito ardente que contraíram por amor do Cristo. Embora se apoias sem num princípio válido para a sua união, não guardaram com igual e mesmo ardor o propósito que tinham abraçado. Seu mútuo afeto era desses que só duram um tempo, porque não era alimentada por igual virtude num e noutro, mas apenas pela paciência de um dos dois.

Por mais magnânima e infatigável que seja a parte daquele que se esforça em conservá-la, é inevitável que ela venha a se romper pela pusilanimidade do outro.

Por maior que seja a paciência dos fortes, para com as fraquezas daqueles que procuram com excessiva frouxidão a saúde da perfeição, são os próprios fracos que não as suportarão. Eles têm em si mesmos as causas de perturbação que não os deixam ficar tranquilos.

É o que costuma acontecer com os que sofrem de uma doença corporal. Atribuem à negligência dos cozinheiros ou dos empregados os fastios do seu estomago doente. Por maior que seja a solicitude dos que lhes servem, imputam aos sãos a causa, da sua agitação, sem perceber que ela está neles mesmos, por sua má saúde.

É por isto, como dissemos, que a união indissolúvel e fiel duma amizade só se firma pela igualdade das virtudes. “O Senhor faz habitar numa mesma casa os que têm um mesmo espírito” (Sl 67,7).

Deste modo, a dileção só pode permanecer sem ruptura, naqueles que têm um mesmo propósito, uma única vontade, um só querer ou não querer.

Se quereis, vós também, guardar inviolável a vossa amizade, deveis apressar-vos a expulsar primeiro os vossos vícios e mortificar vossas vontades próprias e, em seguida, unidos no mesmo esforço e no mesmo propósito, realizar com diligência aquilo que enchia de grande alegria o profeta, ao dizer: “Vede como é bom e como é agradável para irmãos habitarem em comum!” (Sl 132,1).

Isto se deve entender não materialmente, mas espiritualmente. Nada adianta, com efeito, estar juntos numa mesma casa, mas separados quanto à vida e o propósito. Nem importa, por outro lado, estar separados pela distância, se estão unidos por igual virtude. Diante de Deus, é a união quanto ao modo de viver, e não quanto ao lugar, que faz habitar irmãos numa só habitação. E não se pode guardar a paz em sua integridade, onde se acha a divergência das vontades.