CASSIANO — CONFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA XVI — PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE JOSÉ SOBRE A AMIZADE
XIV. Os graus da caridade.
É possível ter para com todos aquela caridade que se chama “agape”. É dela que fala o bem-aventurado Apóstolo: “Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos, sobretudo com nossos irmãos na fé” (Gal 6,10).
Devemos, aliás, a tal ponto testemunhá-la a todos sem exceção, que o Senhor nos ordena que a tenhamos também para com os nossos inimigos: “Amai os vossos inimigos” (Mt 5,44).
Mas quanto à “diáthesis”, isto é, o amor de afeição, é de tributar-se só a poucos, e apenas àqueles que são unidos pela semelhança de costumes ou a sociedade das virtudes, embora essa mesma “diáthesis” pareça ter muitas variedades,
Um, com efeito, é o afeto com que se amam os pais, outro os cônjuges, outro os irmãos, outro os filhos. E mesmo nessas relações afetivas existem grandes diferenças, e nem o próprio afeto dos pais pelos filhos é uniforme.
Temos disto uma prova no exemplo do patriarca Jacó que, sendo pai de doze filhos e amando a todos eles com uma caridade verdadeiramente paternal, amava, porém, a José com um afeto particular, como abertamente o lembra a Escritura: “Seus irmãos o invejavam, porque seu pai o amava” (Gen 37,4).
Não que esse justo, esse pai, não amasse muito os outros filhos, mas ele tinha por aquele, que trazia em si a figura do Senhor, um afeto mais terno e mais complacente.
É, aliás, o mesmo que, segundo lemos, se afirma, com absoluta clareza, do evangelista S. João, que é designado como “o discípulo que Jesus amava” (Jo 13,23). Certamente, o Senhor abraçava os outros onze com igual predileção, como ele próprio o atesta no Evangelho, ao dizer: “assim como eu vos amei, amai-vos uns aos outros” (id 34). É deles também que se diz em outra passagem: “Amando os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (id l).
Mas aqui o afeto dado a um não significa tepidez da caridade em relação aos outros discípulos, mas somente a superabundância do seu amor por João, segundo lho merecia o privilégio da virgindade e a sua integridade na carne.
Esta afeição é apresentada como mais sublime e, de certo modo, excepcional, por que não é a confrontação do ódio que a realça, mas a graça mais copiosa dum amor transbordante.
Encontramos, algo assim no Cântico dos Cânticos, quando fala a pessoa da esposa: “Ordenai em mim a caridade” (Cant. 2,4). Ora, a caridade verdadeiramente ordenada é aquela que, não tendo ódio por ninguém, ama, entretanto, alguns de preferência, em razão dos seus merecimentos. Amando a todos em geral, reserva dentre eles para si os que acha dever abraçar com especial afeto. E entre estes que são os maiores e os principais em seu amor, põe à parte alguns que se elevam acima dos outros em sua afeição.