Cassiano Collatio XIV-9

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — A CIÊNCIA ESPIRITUAL

IX. É preciso passar pela ciência ativa para progredir à ciência espiritual

Se, portanto, sois solícitos em chegar a luz da ciência espiritual, não por vício de vaidade e jactância, mas pela graça da purificação, inflamai-vos, primeiro, do desejo daquela bem-aventurança, da qual se diz: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8), a fim de que possais alcançar também aquela da qual fala o anjo a Daniel: “Os que tiverem sido doutos, fulgirão como o esplendor do firmamento; e os que instruem a muitos para a justiça, brilharão como as estrelas nas eternidades sem fim” ( Dan 12,3); e noutro profeta: “Acendei em vos a luz da ciência, enquanto e tempo ” (Os 10,12).

Guardando essa diligência que eu sinto em vós pela leitura, apressai-vos, com todo zelo, para possuir o mais depressa possível a plenitude da ciência “prática”, isto é, moral. Sem ela, é impossível ter a pureza “theoretica”, de que falamos. E esta só a conseguem — como se fosse, por assim dizer, um prêmio, aqueles que, depois de muito servir numa vida de obras e trabalhos, se tornam perfeitos, não pelo efeito das palavras dos seus mestres, mas peIa virtude dos seus próprios atos.

Não é na meditação da Lei, que eles adquirem a inteligência, mas como o fruto das suas obras. Com o salmista, cantam: “Pelos vossos mandamentos, eu tive a inteligência” (SI 118,104), e, depois de ter eliminado as suas paixões, dizem com confiança: “Eu salmodiarei, e terei a inteligência no caminho imaculado” (SI 100,1-2).

O que salmodia, tem a inteligência daquilo que ele canta, se pisa no caminho imaculado, com o coração puro.

Se, pois, quereis preparar no vosso coração o sagrado tabernáculo da ciência espiritual, purificai-vos do contágio de todos os vícios e despojai-vos das preocupações deste século. É, com efeito, impossível que a alma, envolvida mesmo ligeiramente pelas preocupações do mundo, alcance o dom da ciência, e se torne fecunda em sentidos espirituais, e guarde com tenacidade as santas leituras.

Observai, pois, antes de tudo — principalmente tu, João, cuja idade mais jovem ajuda a guardar o que vou dizer — o empenho em ordenar a vossa boca um completo silencio, a fim de que não as anulem por uma vã exaltação nem o vosso zelo na leitura nem o vosso esforço animado por tanto desejo.

E nisso está o primeiro passo na ciência pratica; receber os ensinamentos e as palavras de todos os antigos, de coração atento, e boca, por assim dizer, muda, e conservá-los com solicitude na alma, empenhando-vos mais em os praticar do que em querer ensiná-los.

Pretender doutrinar é fonte de nociva presunção e vanglória, enquanto que a prática efetiva faz nascer os frutos da ciência espiritual.

Nos encontros com os antigos, não ouses dizer nada, a não ser para perguntar o que te seria prejudicial ignorar ou o que te é necessário saber. Não faças como alguns que, por amor da vanglória, fingem, só por uma ostentação de doutrina, querer saber o que, na realidade, bem conhecem.

A quem, somente em vista do louvor humano, insiste no esforço da leitura, é impossível merecer o dom da verdadeira ciência. Os que são prisioneiros desta paixão, estão forçosamente escravizados a outros vícios, sobretudo a soberba. Ora, assim derrubado na luta pela ciência prática e moral, como pode conseguir a ciência espiritual, que daquela deriva?

Se, portanto, em tudo, “pronto para escutar, mas lento a falar” (Tg 1,19), para que, não se aplique a ti o que nota Salomão: “Se vires um homem veloz na palavra, fica sabendo que há mais esperança no insensato do que nele” (Prov 29,20). E não presumas ensinar a outrem, por palavras, o que não tenhas antes praticado em realidade.

Incumbe-nos manter esta ordem, que nosso Senhor estabelece por seu exemplo: “O que Jesus começou a fazer e ensinar” (At l,l). Cuidado, pois, em não vos precipitar a ensinar antes de fazer, para não serdes postos no número daqueles, de quem no evangelho diz o Senhor a seus discípulos: “Observai e fazei o que eles vos dizem, mas não pratiqueis o que eles fazem: dizem e não fazem. Ligam fardos pesados e insuportáveis e os põem no ombro dos homens, mas não querem movê-los nem com um dedo”(Mt 23,3-Zj.).

Se “aquele que viola um dos menores mandamentos e ensina assim aos homens, será chamado o menor no reino dos céus” (Mt 5,19), quem despreza muitos e maiores e assim presume ensinar, não já será chamado de mínimo no Reino dos céus, mas, sim, haverá de ser tido como o maior no suplício do inferno.

Deste modo, urge que não vos deixeis levar pelo exemplo daqueles que adquiriram habilidade em discutir e uma certa afluência verbal. Eles podem dissertar com elegância e facúndia sobre tudo que quiserem, e passam por ter a ciência espiritual, aos olhos dos que são incapazes de perceber o que eles são.

Pois, uma coisa e ter facilidade em falar e certo brilho no discurso, e outra é entrar até ao coração e a medula das palavras celestes, e contemplar, com o olhar mais puro do coração os mistérios profundos e escondidos. Isto não pode nenhuma ciência humana nem erudição secular possuir, mas somente a pureza da alma, pela iluminação do Espírito Santo.