Carreira das Neves Bodas

Joaquim Carreira da Neves — “Escritos de São João”
BODAS DE CANÁ
Estamos perante o primeiro sinal-milagre de Jesus no IV evangelho. O texto grego assinala-o desta maneira: tautên epoiêsen archên tôn semeiôn: (“foi este o primeiro sinal que ele fez”). Não se trata de um milagre como poder (dunamis) de Jesus, à maneira dos Sinópticos, mas como “sinal”. Em 4, 54, com a cura do filho do funcionário real, diz o texto que Jesus realizou “novamente o segundo sinal ao ir da Judeia para a Galileia”1. Mas já em 2, 23, a propósito da purificação do Templo, escreve o evangelista: “Enquanto Ele estava em Jerusalém, durante as festas da Páscoa, muitos creram nele ao verem 05 sinais miraculosos que realizava (ta semeia ha epoiei)”.Também em 3,2b, Nicodemos dirige-se a Jesus dizendo:”Rabi, nós sabemos que tu vieste da parte de Deus, como Mestre, porque ninguém pode realizar os sinais que tu fazes… (tauta ta semeia poiein há su poies…)”. Semelhantes anacronismos, como vimos, levam alguns exegetas a afirmar que o evangelho primitivo continha apenas alguns sinais-milagres, à maneira dos Sinópticos. Os sete sinais narrados em João misturam-se com muitos outros sinais não narrados como acontece com os milagres narrados nos Sinópticos juntamente com a multidão dos milagres não narrados (Mc 1,32-34; 3,10,6, 5.13. 56 e par.).

Descendo, agora, ao interior do sinal-milagre de Caná, é fácil percebermos que se trata de um sinal-milagre diferente de todos os demais de João, porque não apresenta os diálogos e monólogos típicos de 5,1-17; 6,35-71; 9,1-41 e 11,1-44. A história é simples, mas a carga teológica, no interior desta simplicidade, é enorme, e em tudo de acordo com a teologia e cristologia de João.

Como metodologia, nada melhor do que assinalar os fatos “estranhos” da narrativa: 1) Como explicar a anotação temporal do “terceiro dia” (2, 1) se, antes, em 1, 29. 35. 43, o autor faz referência ao ” dia seguinte”? No mínimo já passaram quatro dias; 2) Como explicar que seja a mãe de Jesus — uma mulher — a notar a falta de vinho, se havia um responsável — o arquitriclino, ou chefe de mesa?; 3) Como explicar que a mãe de Jesus lhe peça a solução do problema quando, logo a seguir, se dirige aos serventes para obedecerem a Jesus?; 4) Como explicar que as vasilhas sejam precisamente seis e estejam vazias, fugindo a todas as normas rituais do judaísmo de então para estas circunstâncias?; 5) Como explicar que o chefe de mesa, que devia estar atento às suas obrigações, para que nada faltasse à boda, vá interpelar o noivo sobre o vinho bom e menos bom como se a culpa fosse do noivo? 6) Como explicar que Jesus nomeie a sua mãe “mulher” e lhe lance o repto estranho: “Que tem isso a ver contigo e comigo?, como que a dizer:”Isso é com o chefe de mesa e não contigo ou comigo!”; 7) Como explicar a insistência da mãe de Jesus, depois desta resposta do filho, em pedir aos serventes que obedeçam em tudo ao filho?; 8) Como explicar a resposta de Jesus à mãe: “mulher, a minha hora ainda não chegou”?

Por tudo isto, temos que concluir que o evangelista não nos quer apresentar uma narrativa de tipo crônica ou jornalística, mas, sim, simbólica. Quem comanda a narrativa é a simbólica cristológica e teológica. E tanto é assim que a narrativa termina por afirmar: “Jesus manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele”. O narrador mistura, como já vimos, as duas camadas literárias: a horizontal da narrativa como crônica, e a vertical da narrativa como teologia. Se Jesus responde à sua mãe que a sua “hora ainda não chegou”, e se tivermos em conta a força simbólica-teológica da hora no IV evangelho (1, 39; cf. 4, 6; 9, 4; 2, 4, cf. 7, 30; 8, 20; 13, 1; 4, 21. 23; cf. 5, 25. 28; 16, 2. 32; 4, 52. 53; 5, 35; 11, 9; 12, 23; cf 17, 1; 12, 27; 16, 4; 19, 27) só podemos concluir que estamos diante duma narrativa de conteúdo teológico. A hora de Jesus acompanha todo o IV evangelho e termina em 19, 27: “E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a (a mãe de Jesus, também chamada mulher) como sua”.Tanto nas bodas de Caná como na Cruz, o evangelista apresenta a “hora” do Messias, de mãos dadas com a”mulher””sua mãe” e com o “discípulo amado”2. A única diferença consiste no fato do “discípulo” aparecer em 19, 27 no singular e em 2,2. 12, no plural. A “hora” de Jesus só pode ser a hora da manifestação messiânica e salvadora, que tem por zênite a própria Cruz. O IV evangelho não é o evangelho dos Apóstolos, mas dos discípulos que, com o Mestre, perfazem a grande fraternidade do homem novo — vinho novo (mathêtês (sing.) e mathêtai (plur.) aparece 59 vezes no IV evangelho). Por alguma razão os autores dividem o IV evangelho em duas partes: 1) o evangelho dos sinais, nos cc.1-12, e 2) o evangelho da hora, nos cc. 13-22. E o evangelho da hora marca o seu ritmo sempre de mãos dadas com os discípulos: (13, 1: “Antes da festa a Páscoa, Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai” e 13, 5: “Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos…”-, 13, 35: “Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos…”; 16, 32: “Eis que vem a hora — e já chegou — em que sereis dispersos”; 17, l:”Pai, chegou a hora…” e 17, 6: “Dei-te a conhecer aos homens que, do meio do mundo, me deste…”; cf. 17, 8-26). Na visão do evangelista, a “hora” de Caná é apenas uma prolepse da “hora” da Cruz, e o “discípulo” da Cruz, embora pessoa e indivíduo, é também o símbolo de todos os demais discípulos, de então, hoje e sempre, começando a acreditar após as bodas de Caná. E importante notarmos que em 2,11 o autor escreve “e os discípulos creram nele”, e em 2,12, Jesus, “depois disto, desceu a Cafarnaum com sua mãe, os irmãos e os seus discípulos…”. No corpo da narrativa do sinal-milagre nunca se fala dos “irmãos”, o que significa que já estamos noutro registo.

Outro termo carregado de simbólica teológica é glória, que aparece 15 vezes em João. A “hora” e a “glória” também caminham juntas. São dois rios cristológicos que desaguam na Cruz (2, 11b: “com o qual manifestou a sua glória, e os discípulos creram nele”). A “hora” de Jesus é, pois, a hora da sua “glória” (17, 4- 5: “Eu manifestei a tua glória na terra… E agora tu, ó Pai, mostra a minha glória junto de ti, aquela glória que eu tinha junto de ti, antes de o mundo existir”). Uma vez mais, a cena das bodas de Caná só se pode compreender à luz da Cruz, que o mesmo é dizer depois da fé na ressurreição.

Mas não são apenas os termos tipicamente teológicos que falam e interpretam a cena das bodas de Caná. Toda a cena é uma tessitura simbólica, que tem por fim a catequese da fé cristã no Jesus Cristo joânico. As “vasilhas de pedra”, que deviam estar cheias de água, para cumprirem a sua função no ritual de qualquer boda judaica, estão vazias. Só podem simbolizar o “vazio” da Lei e, com ela, o vazio de todo o Antigo Testamento como “Aliança” matrimonial entre Deus e o seu povo eleito. Não é por acaso que o primeiro sinal aparece numas bodas. Elas abarcam, de maneira vertical, todo o vazio do Antigo Testamento. E por isso mesmo que estas bodas de Caná simbolizam a nova Aliança, não no “sangue” da Nova “Aliança” da ceia pascal, à maneira dos Sinópticos (Mc 14, 24: “Isto é o meu sangue da aliança”, como em Mt 26, 27, ao contrário de Lc 22, 14: “Este cálice é a nova Aliança” e 1Cor 11, 25), mas na Aliança do “vinho novo” que só acontece agora na pessoa de Jesus: “Tu, porém, guardaste o melhor vinho até agora” (2, 10b).

Também a “mãe de Jesus”, chamada “mulher”, tem a ver com o Antigo Testamento. Ela representa a “virgem de Sião” que suspira pelos dias messiânicos, que só poderão ser de “felicidade” e “abundância” (Is 25, 6-7; 2Baruc, 29, 3. 5: “Quando o Messias começar a revelar-se, (…) cada vinha dará mil varas, cada vara mil cachos, cada cacho mil uvas, e uma uva dará um “kor” de vinho”)3.

Outra figura fundamental é o “arquitriclino” ou chefe de mesa. Como estamos diante de um “banquete ou ceia nupcial” tem que haver um chefe de mesa (cf. Ben Sirac 32, 1). Mas a narrativa desorganiza a normalidade das figuras e seus ministérios. Quem é que devia dar ordens? O chefe de mesa. No entanto, é a mãe de Jesus que as dá: “Fazei tudo o que ele vos disser.” E imediatamente se passa para Jesus como quem ordena e comanda as operações:”Enchei as vasilhas… Eles encheram… Tirai agora e levai ao chefe de mesa… Eles assim fizeram.”Jesus aparece como o mais importante, que tudo determina e tudo transforma. A sua performatividade faz com que um banquete nupcial receba uma tonalidade própria de acordo com o seu poder fazer e poder querer. Ele pode e quer que o banquete de tristeza — sem vinho nem alegria — se transforme em abundância (10, 10b: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”). O chefe de mesa “não sabia de onde tinha vindo o vinho” (v. 9 em discurso indireto e v. 1O em discurso direto), mas sim os “serventes”. Desta maneira, o autor faz com que o chefe de mesa deixe de ser o que devia ser, para passar a ser a pessoa de Jesus, e os servos deixem de ser simples servos para serem discípulos obedientes ao novo chefe de mesa.

O mesmo acontece com o “noivo” como o responsável pela falta de vinho e, sobretudo, “do melhor vinho” (kalon oinon). Mas a chave hermenêutica final, para tudo explicar, reside no fato do noivo reservar “o melhor vinho até agora (eos artí). A quem é que se dirige o chefe de mesa na intenção do autor narrador? A Jesus, naturalmente. Jesus é que se guardou até agora como o noivo/esposo da abundância messiânica. No fundo, estamos diante de uma espécie de parábola em ação que tem por fim levar o leitor a descobrir a revelação da abundância cristã exclusivamente em Jesus. E é por isso que “o terceiro dia” do começo da narrativa (2, 1) em nada contradiz a sequência dos dias anteriores porque, na Bíblia, o “terceiro dia” é sempre o da revelação divina (Ex 19,1.16). Em conclusão, Jesus “substitui todas as personagens essenciais deste banquete nupcial. Ele é, ao mesmo tempo, o mestre de mesa e o esposo das novas núpcias. Passa de convidado para quem convida”4. Jesus vem estabelecer os dias da escatologia realizada nesta abundância e qualidade do vinho melhor guardado por ele “até agora”.



  1. Por causa deste “segundo” sinal, defendemos que a tradução de 2, 11 deve ser: “o primeiro” e não, por exemplo,”o protótipo dos sinais”, como traduz Léon-Dufour, X., 1.1, p. 204, ou o “começo dos sinais”, segundo Morgen, M.,”Le Festin des Noces de Cana (Jn 2, 1-11) et le Repas d’Adieu (Jn 13,1-30)”, em VV.AA, Nourriture et Repas dans les Milieux Juifs et Chrétiens de L’Antiquité (Du Cerf, Paris), p. 152. 

  2. Cf. Serra, A. M., Maria em Caná e junto à Cruz, (Paulistas, Lisboa 1984). 

  3. Léon-Dufour, X., t. 1, Ibid. , p. 229 : « En sa mère il voit désormais la « Femme », c’est-à-dire non plus seulement l’Israël qui lui à donné le jour, mais Sion qui attend et espère le temps du salut définitif.». Sobre o simbolismo do vinho cfr. Koester, C. R., Symbolism in the Fourth Gospel. Meaning, Mystery, Community, (Minneapolis, 1995). 

  4. Morgen, M., Ibid.,p. 142.