Cântico das Criaturas

François Chenique — O Ioga Espiritual de São Francisco de Assis
O Cântico das Criaturas
As Laudes de São Francisco foram compostas em latim. A última, o Cântico das Criaturas, foi composta na língua popular de Saint-Damien, em certa manhã de verão de 1225, depois de uma noite de vivo sofrimento. Para apreciar aquela obra-prima é preciso, antes de mais nada, compreender as relações de São Francisco com a natureza. Longe dos sentimentos panteístas que um certo romantismo pode atribuir-lhe, São Francisco via na natureza a obra do Criador, e como que o reflexo do Seu poder e da Sua bondade.

Essa visão das coisas é bíblica e cristã: a liturgia romana conserva ainda o Cântico das três crianças na fornalha, extraído do Profeta Daniel (III, 52-90), no qual todas as criaturas são convidadas a louvar Deus. Eis alguns versículos:

Céus, bendizei o Senhor, louvai-O e exaltai-O por todo o sempre
Sol e Lua, bendizei o Senhor, louvai-O e exaltai-O por todo o sempre
Astros do céu, bendizei o Senhor, louvai-O e exaltai-O por todo o sempre
Frio e Calor, bendizei o Senhor, louvai-O e exaltai-O por todo o sempre
Luz e Trevas, bendizei o Senhor, louvai-O e exaltai-O por todo o sempre.

Aí está, ao que nos parece, a fonte principal do Cântico das Criaturas, porque, dia após dia, São Francisco, a sós ou em companhia de seus irmãos, repetiu esse hino litúrgico na leitura cotidiana do breviário.

Um dos cronistas de São Francisco conta que, tendo construído uma capela na custódia de Todi, o santo mandou pintar, sobre a frente do altar: “Todos os que temem o Senhor devem louvá-lo. Louvai o Senhor, céu e terra! Louvai-O, todas as águas correntes! Louvai o Senhor, todas as criaturas! Louvai o Senhor, todas as aves do céu”. É fácil ver aí trechos do Cântico das três crianças e a sugestão do Cântico das Criaturas.

Na cabana de Saint-Damien, construída para ele por Santa Clara, São Francisco jazia como um verdadeiro cego. Seus olhos, maltratados pelos remédios da época, não mais suportavam a claridade do dia, e à noite havia uma invasão de arganazes que corriam até junto de seu rosto. Foi nessas circunstâncias lamentáveis que São Francisco compôs e cantou o Canticum Fratris Solis. Certa noite seus sofrimentos tornaram-se tão vivos que ele exclamou, dirigindo-se a Deus: “Senhor, vem ajudar-me para que eu possa suportar com paciência a minha enfermidade”.

Eis a continuação dos acontecimentos, tal como os relata o historiador moderno de São Francisco: “Então, foi-lhe respondido, em espírito: ‘Dize-me, irmão, não ficarias muito feliz, se em troca das penas que sofres te fosse dado um tesouro tal que toda a terra, em comparação, não teria preço?’ E como Francisco se apressasse a responder afirmativamente, a voz continuou: ‘Pois bem, Francisco, regozija-te e canta, pensando que estás assim fraco e doente porque é dessa forma que ganhas o reino dos céus!’

“Na manhã seguinte, muitíssimo cedo, Francisco levantou-se e disse aos irmãos, que se haviam sentado em torno dele: ‘Se o imperador me tivesse feito presente de todo o Império Romano, isso não seria motivo para que eu me regozijasse bastante? Pois eis que agora o Senhor, ainda durante a minha vida terrena, acaba de fazer-me o dom do reino celestial. Portanto, é natural que, entre todas as minhas provações, eu me regozije muitíssimo, e agradeça a Deus Pai, ao Filho, e ao Espírito Santo. Por isso desejo, em honra a Deus, para nosso consolo e para edificação do próximo, compor um novo canto de louvor sobre essas criaturas do Senhor que usamos a cada dia, e sem as quais não poderíamos, absolutamente, viver, e das quais, apesar disso, somos sempre levados a fazer mau uso, com o que afligimos e magoamos nosso Criador. Somos, porém, sempre ingratos, não pensamos na graça e em todos os benefícios que nos cabem, e nos descuidamos de agradecer, como deveríamos, ao nosso Criador que nos deu todos esses belos presentes!’ Depois de dizer isso, sentou-se e pôs-se a refletir. No momento seguinte, porém, os irmãos ouviram-no entoarmos primeiros versículos do Cântico do Sol: ‘Altissimo, omnipotente, bon Signore! — Altíssimo, onipotente, e bom Senhor!’

“E quando terminou de compor o seu canto, todo seu coração encheu-se de consolo e alegria. E quis, imediatamente, que o irmão Pacífico, em companhia de alguns outros irmãos, se pusesse a caminho, pelo mundo. E em todos os lugares a que eles chegavam, instalavam-se e cantavam o cântico novo, depois do que, como verdadeiros jograis de Deus, exigiam uma recompensa de seus ouvintes. Essa recompensa consistia apenas nisto: que os ouvintes se convertessem e se tornassem bons cristãos”.

Eis o texto original do hino, segundo o Speculum Perfectionis, capítulo XX, tal como nos oferece Joergensen1, e nossa tradução (segundo a tradução francesa do original):

Altissimo, omnipotente, bon Signore,
Tue se le laude, la gloria, el honore e onne benedictione.
Ad te solo, Altissimo, se konfano,
Et nullu homo ene dignu te mentouare.
Laudato si, Misignore, cum tucte le tue creature
Spetialmente messor lo frate sole,
Lo quale iorno et allumini noi per loi.
Et ellu e bellu e radiante cum grande splendore
De te, Altissimo, porta significatione.
Laudato si, Misignore, per sora luna e le stelle
In celu lai formate clarite et pretiose et belle.
Laudato si, Misignore, per frate vento;
Et per aere et nubilo et sereno et onne tempo,
Per lo quale a le tue creature dai sustentamente.
Laudato si, Misignore, per sor aqua,
Lo quale e molto utile et humile et pretiosa et casta.
Laudati si, Misignore, per frate focu,
Per lo quale enallumini la nocte,
Ed ello e bello et iocundo et robustoso et forte.
Laudato si, Misignore, per sora nostra matre terra,
La quale ne sustenta et governa
Et produce diversi fructi con coloriti flori et herba
Laudate et benedicete Misignore et rengratiate
Et serviateli cum grande humiliate!
Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus sejam o louvor, a glória, a honra, e todas as bênçãos!
A ti somente, Altíssimo, eles são devidos,
E homem algum é digno de mencionar teu Nome.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
Muito particularmente pelo senhor nosso irmão, o Sol,
Que nos dá os dias e com o qual nos iluminas;
Ele é belo e radiante, com grande esplendor,
De Ti, Altíssimo, traz o testemunho!
E louvado sejas tu, meu Senhor, por nossa irmã, a Lua, e pelas estrelas,
Que formaste no céu, claras, preciosas, e belas!
Louvado sejas tu, meu Senhor, por nosso irmão, o Vento,
E pelo ar, pelas nuvens, e pelo sereno, e por todos os tempos,
Com os quais sustentas as tuas criaturas!
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a água,
Que é muito útil, e humilde, preciosa e casta!
Louvado sejas, meu Senhor, por nosso irmão, o fogo,
Com o qual iluminas a noite,
E que é belo e alegre, robusto e forte!
E louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a mãe Terra,
Que nos mantém e nos governa,
E produz os diversos frutos, e as flores coloridas, e as ervas!
Louvai e bendizei meu Senhor, e agradecei-lhe,
E servi-O com grande humildade!

Um pouco mais tarde, quando o santo voltou a Assis, encontrou o bispo e o podestade em luta aberta. Para reconciliá-los, ele acrescentou duas novas estrofes ao seu cântico, fazendo com que seus irmãos as cantassem:

Louvado sejas, meu Senhor, por todos aqueles que por amor de Ti perdoam os seus inimigos.
E devem suportar a injustiça e a tribulação;
Bem-aventurados são aqueles que as suportam em paz,
Porque serão coroados por Ti, Altíssimo.

Quando seu médico lhe deu a entender que seus dias sobre a terra seriam muito curtos, ele acrescentou ainda duas estrofes:

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a Morte corporal,
A que nenhum homem vivo pode fugir.
Infelizes somente os que morrerem em pecado mortal, mas bem-aventurados os que ela encontrar em tua muito santa vontade,
Porque a segunda morte não lhe poderá fazer mal algum.

São Francisco pediu a dois dos seus irmãos que se conservassem sempre perto dele para que pudessem cantar os louvores de “sua irmã, a morte” quando ele o desejasse. Um irmão repreendeu-o e quis impedir esses cânticos: “Lá fora estão sentinelas, e essas pessoas não quererão acreditar que és um santo, se ouvirem continuamente cânticos e música em tua cela”. São Francisco, contudo, pretendia morrer da maneira que lhe convinha, ele que tantas vezes se havia submetido às repreensões daquele irmão: “Pela graça do Espírito Santo, eu me sinto tão profundamente unido a meu Senhor e Deus, que não posso evitar de regozijar-me nele e de festejá-lo alegremente”.

Durante o dia que precedeu a sua morte, São Francisco fez cantar o Cântico do Sol, repetindo, ele mesmo, as últimas estrofes. Ao anoitecer do sábado, 3 de outubro, pôs-se a cantar sozinho, com forte voz, o Salmo 142: Voce mea ad Dominum clamavi. Assim, recebeu a morte cantando: Mortem cantando suscepit, como escreveu seu biógrafo Thomas de Celano.

NOTAS


  1. O texto do Cântico apresenta algumas variantes, mas é inútil levar isso em consideração, aqui. A tradução, em compensação, oferece dificuldades: deveríamos, por exemplo, traduzir per como por ou como para São Francisco louva a Deus por suas criaturas, isto é, “em nome delas, ou por meio delas”, ou para as suas criaturas, como uma ação de graças cósmica? A questão é difícil de resolver e importa muito pouco parado seguimento do nosso texto; o leitor poderá escolher uma tradução ou aceitar as duas. Será lido com interesse o artigo de H. Louette na revista Les Amis de saint François, t. XIII, nos 9-10, julho-dezembro de 1973; o autor defende o por, enquanto no mesmo número da revista o arrolador da nova obra de Englebert louva-o por ter escolhido a tradução para.