Callisto o Patriarca — Seleção de Jean Gouillard
1. Quereis saber a verdade? Tomai por modelo o tocador de citara. Ele inclina ligeiramente a cabeça de lado, escuta o canto com atenção (epimeleia), ao mesmo tempo em que maneja o arco, e as cordas se respondem harmoniosamente. A citara emite sua música e o citarista é arrebatado pela suavidade da melodia.
2. Laborioso operário da vinha, que meu exemplo vos decida e que não hesiteis. Sede vigilante ( “sóbrio” — nepsis ) como o citarista; quero dizer, no fundo do coração (kardia), e possuireis sem dificuldade o que procurais. Pois a alma (psyche), tomada até o fundo de si mesma pelo amor divino, não pode mais voltar para trás. Porque, diz o profeta Davi: “Minha alma (psyche) está unida a ti” ( Si 63,9 ).
3. Meu bem-amado, por citara entendei o coração (kardia). As cordas são os sentidos, o citarista (“o arco, é a inteligência que, pela razão, move o arco”) é a inteligência que, pela razão, movimenta incessantemente o arco; isto é, a lembrança de Deus, que faz nascer na alma (psyche) uma indescritível felicidade e faz cintilar, no intelecto (nous) purificado, os raios divinos.
4. Enquanto não tamparmos os sentidos do corpo (soma), a água que jorra, e que o Senhor concedeu generosamente à Samaritana, não brotará em nós. Ela procurava a água material e encontrou a água da vida, que brotou dentro dela. Porque, assim como a terra contém água naturalmente e ao mesmo tempo a derrama, também a terra do coração (kardia) contém essa água que jorra e que surge: quero dizer, a luz original que a desobediência fez Adão perder.
5. Essa água viva que jorra, surge da alma (psyche) como de uma fonte perpétua. Era ela que habitava a alma (psyche) de Inácio, o teóforo, e o fazia dizer: “O que tenho em mim, não é o fogo ávido de matéria, é a água que opera e que fala”.
6. A abençoada — o que estou dizendo? a três vezes abençoada — sobriedade (nepsis) da alma (psyche) assemelha-se à água que jorra e que surge da profundeza do coração (kardia). A água que jorra da fonte enche a tina; a que jorra do coração (kardia), e que o Espírito, por assim dizer, agita sem cessar, enche totalmente o homem interior com o orvalho divino e com o espírito, enquanto inflama o homem exterior.
8. O intelecto (nous), que se purificou de tudo o que é exterior e que subjugou inteiramente os sentidos através da virtude (arete) ativa, permanece imóvel como o eixo celeste. Mantém o olhar em seu centro, nas profundezas do coração (kardia). Da cabeça, onde ele domina, olha fixamente o coração (kardia) e projeta, como relâmpagos, os raios de seu pensamento (logismos); vai buscar ali as contemplações (theoria) divinas e subjuga todos os sentidos do corpo (soma).
9. Que nenhum ímpio, que nenhuma criança de peito toque esses objetos proibidos, antes do tempo. Os santos Padres mostraram a loucura dos que procuram as coisas antes do tempo e tentam entrar no porto da impassibilidade ( apatheia ), sem dispor dos meios desejados. Quem não conhece as letras, é incapaz de decifrar uma tabuinha.
9. No combate interior, o Espírito Santo produz um impulso que torna plácido o coração (kardia) e grita dentro dele: Abba, Pai. Esse impulso não tem forma, nem rosto; ele nos transfigura pelo esplendor da luz divina, amolda-nos ao fogo do Espírito, mas também nos modifica e nos transforma como só Deus o pode fazer, através do poder divino.
10. É fácil turvar-se o intelecto (nous) purificado pela sobriedade (nepsis), se não se desprender inteiramente do mundo exterior, por meio da lembrança constante de Jesus. Aquele que une a ação (praxis) à contemplação (theoria), isto é, à guarda do coração (kardia), não se insurge contra os ruídos, confusos ou não, pois a alma (psyche) tocada pelo amor de Cristo segue-o como se segue ao seu Bem-Amado.
12. Entre as águas correntes, umas têm movimento mais rápido, outras mais tranqüilo e mais lento. As primeiras não se deixam turvar com facilidade, pela própria razão da rapidez de seu movimento. Se por algum tempo se turvam, reencontram facilmente a pureza, pelo mesmo motivo. Quando o fluxo diminui e se adelgaça, não somente se turva, mas torna-se quase imóvel, pois tem necessidade de nova purificação (katharsis), por assim dizer, e de um impulso.
13. Os demônios (diabolos) opõem-se aos principiantes da vida ativa através de ruídos, confusos ou não. Aos contemplativos, forjam imaginações (phantasia), tornam colorido o ar, com uma espécie de luz; às vezes, apresentam-no sob a forma de fogo, para desviar o atleta de Cristo para o lado errado.
14. Se quiserdes aprender a orar, considerai o fim da atenção (epimeleia) e da oração (euche) e não vos desvieis. O seu fim, meu bem-amado, é a compunção (katanyxis) constante, um coração (kardia) contrito, o amor ao próximo. O contrário é evidente: pensamento (logismos) de cobiça (philargyria), murmúrio de calúnia, ódio (orge) ao próximo e toda disposição semelhante.