Brown (BLPS) – Como o mal se torna real na criação?

Como o mal se torna real na criação? Em Aurora Boehme atribuiu o início do mal ao ato irracional em que Lúcifer desejou ser como Deus, resultando em desarmonia no reino angélico governado por Lúcifer. A desarmonia que causou também afeta o nosso mundo temporal, que Deus criou para corrigir a queda. Esse relato faz o problema retroceder mais um estágio sem resolvê-lo. Para explicar a possibilidade ontológica do mal, o pensamento maduro de Boehme o fundamenta na natureza do próprio Deus.

O mundo é a imagem finita no espaço e no tempo de todas as qualidades da natureza divina. O centro escuro de Deus está operando na criação, assim como o centro claro. A criação consiste nas mesmas forças opostas que em Deus têm uma relação de harmonia e ordem eternas, agora expressas em um processo que envolve mudança temporal e extensão espacial. A criação é finita porque sua conclusão e seu objetivo são futuros, não são dados simultaneamente com o próprio processo. Além disto, as criaturas do mundo são livres. Portanto, enquanto Deus e o mundo são semelhantes em essência (têm os mesmos constituintes ontológicos), Deus não obriga o mundo a realizar a perfeição de sua essência em imitação de seu próprio ser. Enquanto Deus obtém uma vitória eterna sobre o aspecto destrutivo do centro das trevas, as criaturas deste mundo são livres para imitar a vitória de Deus ou sucumbir à influência desintegradora do Não que está dentro delas. Quando sucumbem, os poderes das trevas de Deus não funcionam mais apenas como forças vitais, mas aparecem como a ira de Deus voltada contra elas. Certas características desse relato ontológico do mal exigem uma explicação mais completa.

Todo ser é verdadeiramente independente de seu criador, pois cada criatura tem seu próprio centro de existência. Deus concede à criatura todos os poderes que ela possui, da mesma forma que o sol fornece a energia para todos os seres vivos da terra. Mas ele não contraria a liberdade do ser, especialmente na natureza humana, pois a liberdade é necessária para que as pessoas sejam moralmente responsáveis por suas ações. A vontade de uma criatura pode se voltar para o bem ou para o mal. O poder de se voltar é literalmente ilimitado, pois Boehme compara explicitamente a liberdade irrestrita da vontade da criatura com a liberdade absoluta do próprio Ungrund. É claro que isso não significa que alguém seja capaz de fazer tudo o que é logicamente concebível. As limitações da existência finita ainda prevalecem. Mas, dentro desses limites, a pessoa pode e faz livremente “qualificar” ou conformar sua natureza para o bem ou para o mal. Deus não julga o resultado. Em vez disto, a criatura carrega o julgamento dentro de si, pois seu ato colhe diretamente sua própria colheita de destruição ou integração ontológica. Neste sentido, cada criatura é um colaborador na criação de sua própria natureza: “Agora, todo homem é um criador (ou moldador) dos poderes e feitos de sua palavra (sic); o que faz e molda por sua livre vontade, o mesmo é recebido, como uma obra da palavra manifestada. . . “.

Boehme acredita que deve ter havido uma queda cósmica antes de Adão. A razão lógica é que o ser que libera no mundo os poderes desenfreados do centro das trevas deve, ele próprio, tornar-se totalmente semelhante a eles e, portanto, coloca-se além de qualquer possibilidade de salvação (o que manifestamente não é verdade para Adão e seus descendentes). A razão exegética é que o caos (portanto, o mal) precedeu a criação de Adão. Portanto, deve ter ocorrido uma queda no reino angelical. Entretanto, não é o caso de Lúcifer ter subitamente decidido estragar uma criação já concluída. Em vez disso, estava entre os primeiros seres criados, e sua queda é simultânea ao seu primeiro ato, que constitui sua natureza. Ele lançou sua imaginação sobre os poderes do centro das trevas e quis que o Não do centro das trevas prevalecesse sobre o Sim do centro da luz. Ele determinou sua natureza eternamente por meio de uma decisão irrevogável e, assim, estabeleceu na criação uma cabeça de ponte para que as forças da destruição e da desordem operassem sem restrições. Seu ato também estabeleceu a realidade de um inferno eterno.

Mesmo que essa história de Lúcifer não dissipe a irracionalidade fundamental que envolve o “porquê” da origem do mal, pelo menos oferece uma explicação, de acordo com a metafísica de Boehme, de como isso ocorreu. O mal já é uma realidade quando Adão entra em cena. Sua história está incluída na seção final deste capítulo, sobre a natureza humana.

Boehme logo abandonou sua posição em Aurora de que Deus não previu a queda. Portanto, mesmo que o próprio Deus não cause o mal, por que, se conhece sua realidade, cria um mundo assim? A resposta parece ser que um mundo que contém o mal é melhor do que nenhum mundo. Mas a resposta de Boehme quase desmerece sua própria intenção e torna o mal uma necessidade, afinal. Diz que a escuridão é necessária para permitir a revelação da luz, e que somente por meio de uma obra de regeneração Deus pode revelar seu amor e graça.