Bossuet União Alma e Corpo

Bossuet — Do conhecimento de Deus e de si mesmo
Excertos de “O Tema do Homem” de Julían Marías

A UNIÃO DA ALMA E DO CORPO

Quis Deus, no entanto, que naturezas tão diversas estivessem estreitamente unidas. (…)

Esta união admirável de nosso corpo e nossa alma é a que temos que considerar. E embora seja difícil e talvez impossível ao espírito humano penetrar seu segredo, vemos algum fundamento dela nas coisas que foram ditas.

Distinguimos na alma duas classes de operações: as operações sensitivas e as operações intelectuais; umas ligadas à alteração e ao movimento dos órgãos corporais, outras superiores ao corpo e nascidas para governá-lo.

Pois é visível que a alma se encontra sujeita por suas sensações às disposições corporais, e não é menos claro que, mediante o comando da vontade, guiada pela inteligência, move os braços, as pernas, a cabeça e, por último, conduz todo o corpo.

Porque se a alma fosse simplesmente intelectual, estaria de tal modo acima do corpo, que não se saberia por onde referir-se a ele; mas por ser sensitiva, isto é, unida ao corpo, e portanto encarregada de velar por sua conservação e defesa, foi necessário estar unida ao corpo por aquele ponto ou, dizendo melhor, por toda sua substância, visto que é indivisível e se podem distinguir suas operações, mas não dividi-la em seu fundo. (…)

Segue-se daí que a alma, que move os membros de todo o corpo por sua vontade, governa-o como uma coisa que lhe está intimamente unida, que a faz sofrer, a si mesma, causa-lhe prazeres e dores extremamente vivos.

Ora, a alma só pode mover o corpo por sua vontade, que naturalmente não tem nenhum poder sobre o corpo, como o corpo não pode naturalmente nada sobre a alma, para fazê-la feliz ou desditada; pois ambas as substâncias são de natureza tão diferente, que uma nada poderia sobre a outra se Deus, criador de ambas, não houvesse unido por sua vontade soberana essas duas substâncias, mediante a dependência mútua de uma em relação à outra: o que é uma espécie de milagre perpétuo, geral e permanente, que se manifesta em todas as sensações da alma e em todos os movimentos voluntários do corpo. (…)

Depois das reflexões que fizemos sobre a alma, sobre o corpo e sobre sua união, podemos agora nos conhecer bem. (…)

Assim, pode-se dizer que o corpo é um instrumento de que a alma se serve a vontade; e por isto Platão definia o homem deste modo: O homem, diz, é uma alma que se serve do corpo.

Poderia-se inferir daí a extrema diferença entre o corpo e a alma; porque não há nada mais diferente que aquele que se serve de algo e a coisa mesma de que se serve.

A alma, pois, que se serve do braço e da mão como lhe apraz, que se serve de todo o corpo, ao qual conduz onde deseja, que o expõe aos perigos que quer e a sua destruição certa, é sem dúvida de uma natureza muito superior a esse corpo, a quem faz servir de tantas maneiras e tão dominadoramente a seus desígnios.

Assim, não se erra quando se diz que o corpo é como o instrumento da alma. E não é de estranhar que, se o corpo está em má disposição, a alma realize pior suas funções. A melhor mão do mundo, com uma pena má, escreverá mal. Se tirais a um trabalhador seus instrumentos, sua habilidade natural ou adquirida de nada lhe servirá.

Há, não obstante, uma diferença extrema entre os instrumentos ordinários e o corpo humano. Se se romper o pincel de um pintor ou o cinzel de um escultor, não se sente os golpes que se lhes deu; a alma, porém, sente todos os que ferem o corpo; e, ao contrário, sente prazer quando se lhe dá o que necessita para manter-se.

O corpo não é, pois, um simples instrumento aplicado exteriormente, nem uma nave que a alma governe como um piloto. Seria assim se fosse simplesmente intelectual; mas, por ser sensitiva, tem que se interessar de um modo mais particular pelo que o afeta, e governá-lo, não como uma coisa estranha, mas como uma coisa natural e intimamente unida.

Em uma palavra, a alma e o corpo juntos constituem um todo natural, e há entre as partes uma comunicação perfeita e necessária.

(De la connaisance de Dieu et de soi-même, III.)