Bossuet Corpo Humano

Bossuet — Do conhecimento de Deus e de si mesmo
O CORPO HUMANO
O que primeiro aparece em nosso corpo é o fato de ser orgânico, isto é, composto de partes dé natureza distinta, que têm diferentes funções.

Estes órgãos foram-lhe dados para exercer certos movimentos.

Há três classes de movimentos. O de cima para baixo, que nos é comum com todas as coisas pesadas; o de nutrição e crescimento, que nos é comum com as plantas; o que é exercido por certos objetos, que nos é comum com os animais. (…)

Para dar nomes a estes três movimentos diversos, podemos chamar o primeiro movimento natural; o segundo, movimento vital; o terceiro, movimento animal. O que não impede que o movimento animal seja vital, e que um e outro sejam naturais.

Este movimento que chamamos animal é o mesmo que se chama progressivo, como avançar, retroceder, andar para um e outro lado.

No mais, parece melhor chamar animal a este movimento que voluntário; porque os animais, que não têm nem razão nem vontade, o fazem como nós mesmos. (…)

Quando o corpo está em bom estado e em sua disposição natural, isto é o que se chama saúde. A enfermidade, pelo contrário, é a má disposição do todo ou de suas partes. E se a economia do corpo se altera de tal modo que as funções naturais cessam totalmente, disto se segue a morte do animal. (…)

Aplicando isto ao corpo do homem — máquina incomparavelmente mais complexa e delicada, porém, no que o homem tem de corpóreo, pura máquina —, pode-se compreender que morre se as molas principais se corrompem; se os espíritos, que são o motor, se separam; ou se, estando em bom estado as molas e os espíritos como devem ser, se impede seu funcionamento por alguma outra causa. (…)

Pelo que se disse, é fácil compreender a diferença da alma e do corpo; e basta considerar as diversas propriedades que neles observamos.

As propriedades da alma são: ver, ouvir, degustar, cheirar, imaginar, ter prazer ou dor, amor ou ódio, alegria ou tristeza, temor ou esperança; afirmar, negar, duvidar, razoar, refletir e considerar, compreender, deliberar, decidir-se, querer ou não querer. Coisas que dependem todas do mesmo princípio, e que entendemos de um modo perfeitamente distinto sem nomear o corpo, a não ser como o objeto que a alma percebe ou como o órgão de que se serVe.

A prova de que entendemos distintamente estas operações de nossa alma é que nunca tomamos uma por outra. Não tomamos a dúvida pela segurança, nem afirmar por negar, nem razoar por sentir; não confundimos a esperança com o desespero, nem o temor com a cólera, nem a vontade de viver segundo a razão com a de viver segundo os sentidos e as paixões.

Assim conhecemos distintamente as propriedades da alma. Vejamos agora as do corpo.

As propriedades do corpo, isto é, das partes que o compõem, são ser mais ou menos extensas, agitarem-se depressa ou mais lentamente, estarem abertas ou fechadas, dilatadas ou contraídas, tensas ou relaxadas, unidas ou separadas umas das outras, espessas ou tênues, capazes de se insinuarem em certos lugares mais que em outros. Coisas que pertencem ao corpo e que constituem evidentemente sua nutrição, seu aumento, sua diminuição, seu movimento e seu repouso.

Basta isto para conhecer a natureza da alma e do corpo e a extrema diferença de uma a outro.

(De la connaissance de Dieu et de soi-même, II.)