Tradução cuidadosa e cercada de notas complementares (NT) do estimado amigo Antonio Carneiro (trabalho ainda em revisão)
DO NÃO-SER E DO SERAFIM DA ALMA
De Deus, considerado « em si », em seu absoluto mais radical, que se pode dizer? Por que nome designar o que está além de todo nome? Mestre Eckhart fala, a este respeito, do “Nome inominável” (nomen innominabile). A palavra « deus » nada mais é que um termo comum que, nas línguas latinas, foi progressivamente consagrado à designação do infinitamente e absolutamente real. Certamente, enquanto Deus é considerado como Princípio da existência, ao mesmo tempo transcendente e imanente a tudo o que é, pode-se designá-lo como o Ser necessário, o Ser por excelência; designação legítima e suficiente para as necessidade especulativas ordinárias, mas da qual não se poderia esquecer o caráter analógico, o “ser” divino transcendendo infinitamente o modo de ser das criaturas. Além disto, neste caso, ele é visado em sua relação ao criado: como então « nomear » Deus enquanto se « situa » além de toda relação causal, logo enquanto repousa em seu puro absoluto?
Eis porque os maiores metafísicos pensaram que Deus em si não fosse nominável, quer dizer concebível, a não ser de uma maneira aparentemente negativa. Donde a designação do Deus Absconditus como Não-Ser ou Supra-Ser. Atribui-se geralmente a estas expressões uma origem oriental, as metafísicas e as teologias do Ocidente se limitando, assim se pensa, à perspectiva ontológica. A realidade é um pouco diferente. É o que desejaríamos mostrar, estudando a significação do sintagma “não-ser” nas diferentes tradições; estudo sumário e que exigiria de fato um volume inteiro, mas que bastaria para estabelecer, assim pensamos, por um lado que este sintagma, nos textos dos pensadores orientais, significa frequentemente: nada, inexistente, e por outro lado, que sua significação mais elevada se encontra sobretudo na tradição platônica. Mas evidentemente, a ausência desta expressão em uma tradição doutrinal não prova de modo algum a ignorância da perspectiva supra-ontológica.
Lembremos de imediato que o francês “não-ser”, que se encontra, assim parece, pela primeira vez em Bossuet, traduz as expressões latinas non-esse ou non-ens (“não-ser” ou “não-ente”), que, elas mesmas, provêm do grego me on: on é um particípio presente neutro e significa « ente »1 ; me exprime a negação, não a negação pura e simples de um fato determinado que não se produziu (o qual se diz ou; ouk diante de uma vogal), mas de fato a negação de uma qualidade ou de uma determinação em geral. Neste sentido, pode exprimir a privação: o não-vidente ou o não-ciente. Ora, negar uma determinação, pode ser também negar uma limitação. Neste caso, mè tem o mesmo sentido que o prefixo português (in-), por exemplo, em “in-finito” ou “in-formal”. Logo é mè-on que, por transposição metafísica, pode corresponder ao Não-Ser guenoniano2 .
- NÃO-SER NO LÉXICO CHINÊS
- NÃO-SER NO LÉXICO SÂNSCRITO
- NÃO-SER NO LÉXICO GREGO
- NÃO-SER NO LÉXICO LATINO
- O SERAFIM DA ALMA
No feminino, o particípio presente do verbo “ser” (einai) toma a forma ousa, a partir do qual o grego forjou o substantivo ousia cuja tradução a mais literal seria o neologismo “estancia”, hoje em dia geralmente adotado pelos especialistas. Quando Cícero empreende dar a conhecer ao latinos a filosofia grega, para traduzir ousia, forjou, segundo Sêneca, a palavra essentia que, em latim, evoca também um substantivo construído sobre uma particípio presente. Mas, quatrocentos anos mais tarde, segundo o testemunho de S. Agostinho, este vocábulo era ainda pouco usado, então desde o primeiro século, e talvez sob a influência de Quintiliano, tomou-se por hábito de verter ousia por substância, neologismo latino calcado sobre o grego hypostasis, termo que designava a verdadeira realidade que se tem sob (sub-stans) as aparências mutantes. Assim, na origem, essência e substância designam a mesma noção. ↩
A terminologia de Platão ou de Aristóteles não é no entanto imutável: ouk on pode ser empregado no sentido de mè on. ↩