Bonnet Mim-Ele

Jacques Bonnet — MIM-ELE
Traduzido de seu ensaio na revista “Études Traditionnelles” n.477.
MIM-ELE
«Mas ele lhes disse: Sou eu; não temais.» (Jo 6,20)

A Vulgata que traduz literalmente o texto grego diz: «Ego sum»: «Eu sou»

Da mesma forma:

«Por isso vos disse que morrereis em vossos pecados; porque, se não crerdes que eu sou, morrereis em vossos pecados» (Jo 8,24). «Prosseguiu, pois, Jesus: Quando tiverdes levantado o Filho do homem, então conhecereis que eu sou, e que nada faço de mim mesmo; mas como o Pai me ensinou, assim falo» (Jo 8,28). «Desde já no-lo digo, antes que suceda, para que, quando suceder, creiais que eu sou» (Jo 13,19).

Estas expressões se encontram pré-figuradas na Bíblia hebraica:

«Vede agora que eu, eu o sou, e não há outro deus além de mim; eu faço morrer e eu faço viver; eu firo e eu saro; e não há quem possa livrar da minha mão» (Deut 32,39)

«Vós sois as minhas testemunhas, do Senhor, e o meu servo, a quem escolhi; para que o saibais, e me creiais e entendais que eu sou o mesmo; antes de mim Deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá.» (Is 43,10). «Eu sou Deus; também de hoje em diante, eu o sou; e ninguém há que possa fazer escapar das minhas mãos; operando eu, quem impedirá?» (Is 43,13).

Na primeira citação do Evangelho, os discípulos estão em um barco sobre o lago e Jesus se aproxima deles andando sobre a água. Eles temem e Jesus lhes diz: «Eu sou, não temais».

O capítulo 43 de Isaías começa por: «Quando passares pelas águas, eu serei contigo; quando pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti.».

As citações seguintes do Evangelho dizem: «Creiais, conheçais que eu sou» e Isaías: «Saibais, creiais, conheçais que eu sou».

Confirmação: o capítulo 8 de São João de onde foram tirados estas citações termina por: «Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou.» e este mesmo capítulo 43 de Isaías no verso 13: «Desde sempre eu sou».

A asserção de Isaías: «eu sou o primeiro e o último» (Is 41,4 e 48,12) (com também ani hou) se encontra no Apocalipse.

Ora em todas as citações, o termo hebraico é ani hou, literalmente: «eu, ele».

Frequentemente ani é repetido e frequentemente seguido da negação aïn ou eïn.

Deut 32,39: ani ani hou ve aïn elohim ‘imadi ani: «… sou Eu que é Ele, e não há Deus ao lado de Mim.»

Isaías 43,11: anokhi, anokhi IHWH We-eïn mibal’adaï moshi’a: «sou Eu que sou IHWH, e fora de mim não há salvador».

A tradição judia interpreta o inversão de ani, «mim» en aïn «nada» como as duas faces de uma mesma realidade.

Da mesma forma a justaposição de ani, «mim» e de hou «ele». Hou significa frequentemente apenas «Deus» diz o Sander e ele dá como exemplo Números 23,19.

Esta referência ao hebreu ilustra, no quadro do cristianismo a afirmação de Jesus de sua dupla natureza, logo da união entre sua natureza humana e sua natureza divina.

É surpreendente aproximar o versículo citado de Deut. 32,39: «Vedes que sou Mim que sou Ele (ani hou) e que não nada (eïn) há de Deus (elohim) ao lado de mim (ani)», de numerosas expressões corânicas, tais como:

«Não há (aí) Deus (ilâha) senão (illa) Ele (houa)» (Corão 3,1).

«Não há Deus, senão Mim (ana)» (Cor 16,2).

Sim (innahou, lit.: «certo ele») mim (ana) Alá» (Cor 27,9). Enfim, a profissão de fé que cada muçulmano repete todos os dias:

Là ilâha ill-Allah. «Nada há de divindade senão A Divindade», que reune (como no Deut.) a afirmação e a negação.

Assim como em hebraico, o árabe houa, «ele», designa Deus (Cor 27,29 e 35,37) e, sob a forma de â’al-huwiyah na língua sufi, o atributo divino que [[Titus Burckhardt) traduz por ipseidade: «o estado de ser ele». Este autor adiciona (Do Homem Universal, p18): «esta expressão designa o mistério absoluto, A ela se opõe logicamente o «sujeito» divino, al-aniyah, cujo nome é derivado do pronome ana, «mim».

Na tradução que fez extratos do tratado de Abd-el-Karim al-Jili, lê-se isto:

«Se mergulhas na contemplação de teu sujeito (aniyah) pelo qual tu és ti mesmo, tu só és testemunha de tua ipseidade (huwiyah) sem que te apareça neste estado algo das realidades que se relacionam a ti; portanto tu é ti mesmo a síntese destas realidades» (op.cit p 45).

«Não aprendestes que Deus é tua essência e tua ipseidade (huwiyah)… Tu és divinamente revelado a ti mesmo e, ao mesmo tempo, por conta de tua natureza criada, inconsciente de tua realidade divina; logo tu és simultaneamente manifestado e oculto a ti mesmo… só compreendem o conhecedores» (p. 57)

…«A alguns deles que foram elevador até a Árvore de Lotus do extremo limite (alusão à ascensão noturna de Maomé), será dito: «Meu amigo, teu amigo (aniyah) é meu si (huwiyah)».

… «É assim que Tu és e que nós somos e a realidade essencial não se percebe» (pp. 75-76).

Estas considerações concordam com aquelas dos hindus sobre a relação essencial ou identidade entre a “alma vivente”, jivatma, e o Espírito universal, denominado «Si», atma. O equivalente exato de ani houa em sânscrito é so’ham asmi: «Eu sou Ele».

Na tradição mística judaica interpretando certas passagens onde Deus fala em começando por ani (Gen 6,17; 17,4), este termo ani, diz o Zohar (1,65b) evoca a relação entre a aparência individual e a essência espiritual (goufa le nishinata).