Bogomilismo

BOGOMILISMO
Mitologia Grega
Mircea Eliade
Excertos de História das Crenças e das Ideias Religiosas, vol. 3

Desde o século X, os observadores leigos e religiosos de Bizâncio perceberam a eclosão, na Bulgária, de um movimento sectário, o bogomilismo. Seu fundador era um pároco de aldeia, conhecido como Bogomil (“amado de Deus”), a cujo respeito nada se sabe com exceção do nome. Por volta de 930, ao que tudo indica, deu ele início à sua pregação de pobreza, humildade, penitência e prece; pois, segundo Bogomil, este mundo é mau, tendo sido criado por Satanael (irmão de Cristo e filho de Deus), o “Deus perverso” do Antigo Testamento1. Os sacramentos, os ícones e as cerimônias da Igreja Ortodoxa são inúteis, porquanto são obra do Diabo. A Cruz devia ser abominada, pois foi numa cruz que torturaram e mataram Cristo. A única oração válida era o Pai Nosso, pronunciado quatro vezes ao dia e quatro vezes à noite.

Os bogomilos não comiam carne, não bebiam vinho e desaconselhavam o casamento. Sua comunidade não tinha nenhuma hierarquia. Tanto os homens como as mulheres se confessavam e davam a absolvição uns aos outros. Criticavam os ricos, condenavam os nobres e estimulavam o povo a desobedecer a seus senhores pela prática da resistência passiva. O êxito do movimento explica-se pela devoção popular, desiludida com o luxo da Igreja e com a falta de decoro dos sacerdotes, e ainda pelo ódio dos camponeses búlgaros — pobres e reduzidos à servidão — contra os proprietários e, sobretudo, contra os agentes bizantinos2.

Após a conquista da Bulgária (1018) por Basileu II, numerosos nobres búlgaros estabelecem-se em Constantinopla. Adotado por algumas famílias da nobreza local e mesmo por certos monges bizantinos, o bogomilismo organiza a sua teologia. Mas foi provavelmente por causa das disputas teológicas que ocorreu a cisão da seita. Aqueles que defendiam a autonomia de Satã, afirmando que ele é um deus eterno e todo-poderoso, congregam-se na Igreja de Dragovitsa (nome de uma aldeia na fronteira entre a Trácia e a Macedônia). Os antigos bogomilos, que consideravam Satã como o filho decaído de Deus, conservam o velho nome de “búlgaros”. Embora os “dragovitsianos” proclamem um dualismo absoluto e os “búlgaros” um dualismo moderado, as duas Igrejas toleram-se mutuamente. De fato, o bogomilismo passa nessa época por um novo desenvolvimento. Algumas comunidades organizam-se em Bizâncio, na Ásia Menor, na Dalmácia, e aumenta o número de fiéis. Distinguem-se agora duas categorias: os sacerdotes e os crentes. A prece e o jejum adquirem maior importância, as cerimônias multiplicam-se e tornam-se mais longas. “No final do século XII, o movimento camponês do século X transformou-se numa seita de ritos monásticos e de doutrina especulativa na qual a desavença entre o dualismo e o cristianismo é cada vez mais sensível3.”

Quando a repressão se organiza, já no início do século XII, os bogomilos retrocedem até o norte dos Balcãs e seus missionários dirigem-se para a Dalmácia, a Itália e a França. Contudo, em certos momentos, o bogomilismo logra impor-se oficialmente, como, por exemplo, na Bulgária, na primeira metade do século XIII; na Bósnia, torna-se religião do Estado no governo do Ban Kulin (1180-1214). Entretanto, a seita perde sua influência no século XIV, e, após a conquista otomana da Bulgária e da Bósnia (1393), a maioria dos bogomilos converte-se ao Islã4.

Não tardaremos a acompanhar o destino do bogomilismo no Ocidente. Acrescentemos que, no Sudeste da Europa, certas concepções bogomilas foram transmitidas pelos Apócrifos e sobrevivem ainda no folclore. Na Idade Média, uma série de livros apócrifos circulava na Europa oriental sob o nome de um sacerdote bogomilo, Jeremias5. Nenhum desses textos, porém, é obra de Jeremias. Por exemplo, O Madeiro da Cruz, cujo assunto era célebre em toda a Europa medieval, deriva do Evangelho de Nicodemo, obra de origem gnóstica. O tema de outro apócrifo, Como Cristo se Tornou Sacerdote, era conhecido dos gregos de longa data. Os bogomilos, no entanto, acrescentaram a essas velhas lendas elementos dualistas. A versão eslavônia dO Madeiro da Cruz começa com a seguinte frase: “Quando Deus criou o mundo, somente existiam Ele e Satanael (.. .)6.” Ora, como vimos, esse motivo cosmogônico é amplamente difundido, mas as variantes do Sudeste europeu e eslavas conferem importância ao papel do Diabo. Seguindo o modelo de determinadas seitas gnósticas, os bogomilos provavelmente fortaleceram o dualismo, realçando o prestígio do Diabo.

Da mesma forma, no apócrifo Adão e Eva, os bogomilos introduziram o episódio de um “contrato” assinado por Adão e Satã, segundo o qual, sendo a Terra criação deste último, Adão e seus descendentes lhe pertenciam até o advento de Cristo. Esse tema volta a ser encontrado no folclore balcânico7.

O método da reinterpretação dos Apócrifos é ilustrado pela Interrogatio Iohannis, a única obra bogomila autêntica, traduzida em latim pelos inquisidores do Sul da França. Trata-se de um diálogo entre João Evangelista e Cristo, no qual se discutem a criação do mundo, a queda de Satã, a ascensão de Enoque e o Madeiro da Cruz. Nele se encontram passos colhidos em outros Apócrifos, e a tradução de uma obra eslavônica do século XII, Questões de João Evangelista. “A teologia é, porém, rigorosamente bogomila. Satã, antes de sua queda, era o primeiro depois de Deus Pai (Cristo, no entanto, continuava a ocupar o lugar ao lado de Deus Pai); (… ) Mas não podemos dizer se se trata de uma obra bogomila original ou da tradução de um trabalho grego. A julgar pela doutrina, ela representa provavelmente uma compilação, devida a algum autor bogomilo ou messaliano, de materiais apócrifos mais antigos8.

O que interessa ao nosso estudo é que esses Apócrifos e principalmente suas variantes orais, durante vários séculos, desempenharam um papel na religião popular. Como veremos, eles não eram as únicas fontes do folclore religioso europeu. Contudo, a persistência dos temas heréticos dualistas no Universo imaginário do povo humilde não deixa de ter significação. Um único exemplo: no Sudeste da Europa, o mito da Criação do mundo com o auxílio do Diabo (que mergulha no fundo do oceano primordial para buscar lama) tem por consequência o cansaço, físico e mental, de Deus. Em algumas variantes, Deus adormece profundamente; em outras, ele não sabe resolver um problema pós-cosmogônico: não consegue encaixar a Terra sob a abóbada celeste, e é o ouriço que o aconselha a comprimir um pouco a Terra, dando assim nascimento às montanhas e aos vales9.

O prestígio do Diabo, a passividade de Deus e sua incompreensível queda podem ser considerados como uma expressão popular do deus otiosus das religiões “primitivas”, onde, depois de ter criado o Mundo e os homens, Deus se desinteressa da sorte de sua Criação e retira-se para o Céu, deixando a conclusão de sua obra a um Ente Sobrenatural ou a um demiurgo.


NOTAS
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  1. É provável que Bogomil tivesse conhecido certas ideias dualistas difundidas pelos paulicianos e pelos messalianos, hereges da Ásia Menor (séculos VI-X) ; ver uma breve exposição de suas doutrinas e de sua história em Steven Runciman, Le manichéisme médiéval, pp. 30-60. 

  2. Ver, sobretudo, Robert Browning, Byzantium and Bulgária, pp. 163 s. Encontrar-se-á um paralelo na Cruzada contra os albigenses, na qual se manifesta a cobiça dos Senhores do Norte pela riqueza dos nobres meridionais. 

  3. Arno Borst, Les Cathares, p. 63. Ver também as fontes citadas nas notas. 

  4. A história do movimento é contada por Runciman, op. cit., pp. 61 s.; Obolensky, The Bogomils, pp. 120 s. Sobre a persistência dos núcleos bogomilos nos Balcãs e na Roménia até o século XVII, ver N. Cartojan, Cartile populare, I, pp. 46 s.; Razvan Theodorescu, Bizant, Baleani, Occident, pp. 241 s. 

  5. Ver Runciman, op. eit., pp. 76 s.; E. Turdeanu, “Apocryphes bogomiles et apocryphes pseudo-bogomiles“; etc. 

  6. Citado por Runciman, p. 78. Sobre a história e a divulgação dessa lenda, ver N. Cartojan, Cartile populare, I, pp. 115 s.; E.C. Quinn, The Quest of Seth for the Oil of Life, pp. 49 s. 

  7. No que se refere às lendas romenas, ver Cartojan, op. cit., pp. 71 s. 

  8. Runciman, p. 80. Ver Édina Bozóky, Le Livre Secret des Cathares. 

  9. Ver as fontes citadas em De Zalmoxis à Gengis-Khan, pp. 89 s.