Jacob Boehme – Da Encarnação de Jesus Cristo
VIDE: reconhecimento
CAPÍTULO I
Que a pessoa de Cristo, assim como sua encarnação, não podem ser reconhecidas pela sagacidade natural ou pela letra das Santas Escrituras, sem a iluminação divina. E ainda, da origem do eterno Ser divino.
1. Cristo tendo demandado a seus discípulos: “Que dizem as pessoas que o filho do homem é?” Eles lhes responderam: “Uns dizem que tu és Elias, outros que tu és João Batista ou um dos profetas”. Então lhes perguntou: “E vós, que dizeis que eu sou?” Pedro lhe respondeu: “Tu és Cristo, o filho do Deus vivo”. E Ele lhe respondeu: “Em verdade, a carne e o sangue não te manifestaram isso, mas certamente meu Pai que está no céu; e Ele lhes anunciou, ali mesmo, seus sofrimentos, sua morte e sua ressurreição” (Mat. XVI, 21), Para lhes fazer ver que a razão própria, sagacidade e sabedoria mundanas, não poderia nem reconhecer nem compreender a pessoa que era Deus e homem; mas que frequentemente ele só seria bem conhecido daqueles que se entregassem inteiramente a Ele, e que, pelo amor Dele, suportariam a cruz, a aflição e a perseguição, e se ligariam a Ele com ardor. O que de fato sucedeu, pois quando ainda estava visível entre nós, no mundo, ele foi raramente reconhecido da sagaz razão, o que tenha feito de milagres, a razão exterior foi tão cega e pouco inteligente, que tais grandiosas maravilhas foram atribuídas pelos mais sábios da sutil razão ao demônio. E como no tempo de sua estada neste mundo, permaneceu incógnito da razão e da inteligência próprias, assim como permaneceu incógnito e mal conhecido da razão exterior.
2. Daí nasceram tantas disputas e combates a respeito de sua pessoa, que a razão exterior sempre pode crer poder sondar aquilo que são Deus e o homem, como deus e o homem podem ser uma única pessoa? Dito combate preencheu o mundo, visto que toda razão própria tem constantemente acreditado ter apreendido a pérola sem refletir que o reino de Deus não é deste mundo, e que a carne e o sangue não podem nem reconhece-lo nem compreende-lo, muito menos ainda sondá-lo.
3. Logo convém que todo homem que deseja falar dos mistérios divinos ou ensiná-los, tenha também o espírito de Deus, que reconheça na luz divina a coisa que quer anunciar como uma verdade, e não a gere de sua própria razão que, sem conhecimento divino, apoie sua opinião sobre a letra morta, e levante a Escritura pelos cabelos, como a razão tem costume de o fazer; de onde nasceram quantidade de erros, pois se buscou o conhecimento divino na inteligência e perspicácia próprias, o que nos conduziu da verdade divina para a razão própria; tomou-se a encarnação de Cristo por uma coisa estranha e distante, enquanto que, no entanto, devemos todos nascer de novo em Deus, nesta mesma encarnação, se desejamos escapar ao furor da natureza eterna.
4. Assim, logo que é para os filhos de Deus uma obra íntima, inerente, logo eles devem se ocupar diariamente, a toda hora, e entrar sempre na encarnação de Cristo, sair da razão terrestre, e assim nascer, no nascimento e na encarnação de Cristo, durante esta vida de misérias, se eles querem ser filhos de Deus em Cristo, eu me propus escrever para um memorial, este alto mistério, de acordo com meu conhecimento e meus dons, afim que tenha assim um assunto a me deliciar e me restaurar cordialmente com meu Emanuel, pois estou também com outros filhos de Cristo, neste nascimento, e para possuir uma lembrança e um preservativo, caso a carne e o sangue tenebrosos e terrestres queiram me introduzir o veneno do diabo e me obscurecer minha imagem: eu me propus a isto por um exercício de fé, a fim que minha alma possa assim, como um ramo em Jesus Cristo sua árvore, se restaurar de sua seiva e de sua força; e isto, não com altos e preparados discursos da arte ou da razão deste mundo, mas segundo o conhecimento que tenho de Cristo minha árvore, a fim de que meu ramo verdeje e cresça também, ao lado de outros, na árvore e na vida de Deus. E bem que eu funde alta e profundamente, e que isso seja exposto muito claramente aqui adiante, que o leitor saiba no entanto que sem o espírito de Deus, isso lhe permanecerá um mistério inapreensível. Eis porque, que cada um se guarde do juízo que terá, com medo que não caia no juízo de Deus e não seja pego por sua própria turba, e que sua própria razão no precipite; digo isto com boa intenção e dou ao leitor para aí refletir.