Boécio (CF:IV.11) – Providência e Destino

BOÉCIO. A consolação da filosofia. Tr. de Willian Li. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (ebook)


“Aceito o que afirmas”, disse eu, “mas, como a ti foi dado desvendar as causas dos fenômenos obscuros e explicar qual o seu mistério, peço-te que desvendes completamente a questão e me esclareças quanto a um assunto que me aflige muito.” Então ela esboçou um ligeiro sorriso: “Tu me pedes”, disse ela, “para abordar uma questão cujo estudo se reveste da mais alta importância e que é quase impossível discernir na sua totalidade. E, de fato, a questão é de tal ordem que, se tocamos num só dos problemas que comporta, vão surgindo outros ao infinito, como as cabeças da Hidra, e não se poderia deter seu ritmo senão graças a um recurso especial da inteligência. Com efeito, ao abordar essa questão, habitualmente caímos em outras mais complicadas, que são as da indivisibilidade da Providência, do curso do Destino, dos acontecimentos imprevisíveis, do conhecimento e da predestinação divinas e do livre-arbítrio, questões essas cuja dificuldade bem podes avaliar. Mas já que uma parte do teu tratamento consiste em examinar igualmente todos os assuntos, embora o nosso tempo seja limitado, tentaremos abordar rapidamente esses temas. Mas, se a poesia e a música igualmente te atraem, é preciso que adies tais prazeres para mais tarde. É preciso, em vez disso, que eu construa, numa ordem rigorosa, uma série de argumentos.” “Como queiras”, disse eu. Então, passando a um outro assunto, ela discorreu nestes termos: “Tudo o que vem ao mundo, todos os seres sujeitos à mudança e à evolução, tudo o que se move de uma certa maneira, encontram sua causa, sua ordem e sua forma na estabilidade da inteligência divina. Esta, firme na cidadela de sua indivisibilidade, fixa uma regra multiforme ao governo do universo. Quando se considera essa regra do ponto de vista da pureza da inteligência divina, chamamo-la Providência; mas quando se a considera com relação àquilo que ela põe em movimento e ordena, é o que os antigos chamavam Destino. Ver-se-á facilmente que se trata de duas coisas diversas, se examinarmos a natureza de cada uma delas. Com efeito, a Providência é precisamente a razão divina que reside no princípio supremo de todas as coisas e que ordena o universo; quanto ao Destino, trata-se da disposição inerente a tudo o que pode mover-se, e pela qual a Providência reúne todas as coisas, cada uma no seu devido lugar. E, com efeito, a Providência abarca todas as coisas de uma só vez, apesar da sua diversidade e do seu número infinito; quanto ao Destino, ele reparte cada coisa individualmente situando-a no espaço e no tempo, atribuindo-lhe uma forma em vista de seu movimento, embora esse desenvolvimento da ordem temporal que mostra sua unidade na perspectiva da inteligência divina seja a própria Providência, enquanto essa mesma unidade, uma vez distribuída e alocada no tempo, chamase Destino. Embora se trate de duas coisas diferentes, elas dependem uma da outra: o desenvolvimento do Destino procede da indivisibilidade da Providência. Com efeito, do mesmo modo que um artista começa por representar mentalmente a forma de sua criação antes de passar para a realização, e além disso cumpre por etapas sucessivas aquilo que estava representado em suas linhas gerais, assim também Deus fixa pela Providência o que deve ser feito, uma só vez e definitivamente, enquanto o Destino organiza na multiplicidade e na temporalidade exatamente aquilo que foi fixado. Por conseguinte, que o Destino seja movido por espíritos divinos ao serviço da Providência, ou que a trama do Destino seja urdida pela alma, pela natureza, que lhe é totalmente servil, pelo movimento dos astros no céu, pelo poder dos anjos ou pela habilidade multiforme dos demônios – que um só ou mesmo todos esses fatores venham a intervir –, o que é absolutamente evidente é que a forma imutável e simples do que se deve realizar é a Providência, enquanto o Destino é o entrelaçamento cambiante e o decorrer temporal daquilo que a simplicidade divina fixou para ser realizado. Segue-se que tudo o que é subordinado ao Destino o é também à Providência, à qual está submetido o próprio Destino, mas que certas coisas que estão colocadas sob o controle da Providência não estão subordinadas ao encadeamento do Destino. Estas são coisas tais que, fixadas de maneira imutável na proximidade da divindade suprema, escapam ao Destino e às suas combinações cambiantes. Suponhamos os círculos concêntricos. O que está mais próximo do centro aproxima-se mais de sua indivisibilidade e constitui, para todos os outros círculos situados no exterior, uma espécie de pivô em torno do qual giram os outros, enquanto o círculo mais externo, que descreve a maior circunferência, se desdobra de maneira tão mais extensa que se afasta da indivisibilidade do centro; por outro lado, se um círculo coincide em todos os seus pontos com o centro e cessa de se desdobrar e estender, segundo o mesmo raciocínio, quanto mais alguma coisa se distancia da inteligência suprema, mais e mais os liames do Destino a envolvem, enquanto alguma coisa é tanto menos dependente do destino quanto mais se aproxima desse pivô do universo. E, se ela adere firmemente à inteligência suprema, desprovida de todo movimento, torna-se também imóvel e escapa à dominação do Destino. Dessa forma, aquilo que o raciocínio é com relação à inteligência, e o ser criado ao ser absoluto, o tempo à eternidade, a circunferência ao centro, eis aí precisamente o que é a ordem variável do Destino comparada à unidade imutável da Providência. E é essa ordem do Destino que faz mover o céu e os outros astros, que mantém a harmonia entre os elementos e estabelece entre eles uma mudança alternada de formas e qualidades; ela renova todos os seres que nascem e morrem sem qualquer modificação, permitindo aos seres pequenos e a suas sementes crescerem segundo sua natureza. É essa mesma ordem do Destino que tece os liames das ações dos seres humanos às suas diferentes fortunas segundo um encadeamento imutável de causas, dado que têm sua origem na Providência. Assim sendo, o universo é regido da melhor maneira dado que a indivisibilidade, que é a sede da inteligência divina, produz um encadeamento inevitável de causas, e, por outro lado, esse encadeamento domina por sua imutabilidade os seres sujeitos à transformação, que, sem ele, estariam abandonados ao acaso. E é dessa forma que, mesmo se tua incapacidade de apreender o encadeamento das coisas leva-te a ver somente confusão e desordem em todas as coisas, tudo é regido por uma lei que orienta todas as coisas para o bem. Com efeito, não há nada que ocorra tendo em vista o mal, mesmo no caso dos malfeitores; eles, como foi amplamente demonstrado, procuram o bem, mas se desviam do caminho devido a uma deplorável ignorância, e evidentemente não seria um encadeamento de fatos que tivesse sua origem no bem supremo que poderia afastá-los de seu próprio princípio. ‘No entanto’, dirias tu, ‘pode-se imaginar confusão maior que aquela na qual os bons experimentam tanto a adversidade quanto a prosperidade e na qual os malfeitores vêem realizar-se tanto o que desejam quanto o que não desejam?’ Ah! Acaso os homens seriam suficientemente inteligentes para ter sempre razão quando julgam alguém bom ou mau? A esse respeito, os juízos dos homens são discordantes, e os homens que a alguns parecem merecer a recompensa e a outros o castigo são os mesmos. No entanto, admitamos que haja um homem capaz de distinguir os bons dos malfeitores: seria ele também realmente capaz de observar o temperamento íntimo das almas? Na realidade, surpreendendo-te assim em nada diferes daquele que não sabe por que, quando se não goza de boa saúde, os alimentos doces são mais apropriados a uns e os alimentos ácidos a outros, e também por que a medicina suave tem sucesso em certos doentes enquanto outros necessitam de medicina mais violenta. Isso, no entanto, não é nada surpreendente para o médico que distingue, segundo os casos, graus e diferenças na doença e mesmo na saúde. E, por outro lado, o que te parece ser a saúde das almas senão a bondade? E a sua doença, a maldade? E quem é que preserva as coisas boas e afasta as más senão Deus, mestre e médico das almas? Pois é ele quem, ao volver o olhar de seu posto de observação que é a Providência, reconhece o que convém a cada um e lhe aplica o tratamento que sabe ser o mais adequado. É então que intervém o fato surpreendente que é a realização do Destino, quando Deus realiza conscientemente algo que causa espanto aos ignorantes. Com efeito, se eu quisesse limitar-me a lembrar alguns exemplos acessíveis à razão humana para ilustrar a profundidade de Deus, quando vês em alguém a encarnação da justiça e uma perfeita eqüidade, a Providência, que tudo sabe, tem um juízo inverso a respeito dele; nosso amigo Lucano nos faz notar que ‘se a causa do vencedor deve aos deuses o seu favor, a do vencido tem o de Catão por si?’ Por conseguinte, tudo o que vês acontecer aqui de contrário a tuas expectativas é na verdade a expressão da ordem que mais convém ao universo, mesmo se, a teus olhos, pareça ser uma desordem onde reina a confusão. Suponhamos a existência de alguém cujos costumes fossem suficientemente bons para que a seu respeito o julgamento divino e o humano coincidissem; mas, se lhe falta força de espírito e se alguma contrariedade o assalta, corre o risco de cessar de cultivar uma virtude que não lhe permitirá manter a Fortuna a seu favor. É essa a razão por que uma sábia repartição arranja as coisas para ele, a quem a virtude poderia ser diminuída pela adversidade, a fim de que se evite sofrer algo para o que não está preparado. Suponhamos a existência de outro homem, virtuoso em todos os pontos, santo e próximo a Deus; a idéia de que tal homem possa ser atingido por não importa que tipo de mal parece tão sacrílega à Providência que ela nem sequer permite que a menor doença corporal venha acometê-lo. Como de fato diz um que é mais eminente que eu: ‘O corpo do homem amado pelos deuses está pleno de força.’9 Além disso, freqüentemente a direção dos negócios humanos é confiada aos bons para que se coloque um freio nas extravagâncias da maldade. A alguns, a Providência, segundo o seu temperamento, envia uma mistura de bens e males: ela atiça uns para evitar que uma felicidade muito prolongada os corrompa; permite a outros que sejam duramente golpeados, a fim de que suas virtudes se reforcem pela prática e pelo hábito da paciência. Uns temem mais do que deveriam os males que podem suportar; outros desprezam temerariamente penas que excedem suas forças; é para fazer com que uns e outros se conheçam melhor que Deus lhes envia essas provas. Uns adquirem ao preço de uma morte gloriosa o respeito dos homens por seu nome; outros, não se dobrando à tortura, dão exemplo a todos mostrando que os males não podem prevalecer sobre o mérito. Ora, que essas provas aconteçam como convém, de maneira ordenada e no interesse daqueles sobre os quais elas se abatem, não se pode duvidar. Pois o fato de os malfeitores receberem um tratamento ora desagradável, ora conforme aos seus desejos segue a mesma razão; e, quanto ao mau tratamento que os malfeitores recebem, ninguém evidentemente se espanta, pois todos consideram que bem o merecem. E, na verdade, seus castigos dissuadem os outros de fazerem o mesmo, corrigindo dessa forma todos a quem são expostos; mas, quando lhes acontecem coisas agradáveis, trata-se de uma grande lição para os homens de bem, que aprendem assim como devem considerar essa forma de prosperidade, que freqüentemente está a serviço dos malfeitores. Quanto a esse assunto, creio também que uma tal repartição se deve ao fato de haver homens de uma natureza tão impulsiva e brutal que a miséria poderia levá-los a cometer os piores crimes; assegurando-lhes conforto material a Providência cuida de sua doença. Este, sentindo sua consciência manchada pela desonra e comparando-se a si mesmo com a sua Fortuna, teme mais que os outros perder os bens que constituem sua alegria. E, por medo de perder seu tesouro, modificará seu comportamento e corrigirá seus vícios. Outros sofrem um desastre merecido por terem abusado de sua prosperidade. Alguns receberam o direito de punir a fim de que as pessoas honestas fossem postas à prova, e os malfeitores, castigados. De fato, assim como não há nenhuma aliança possível entre os honestos e os malfeitores, estes últimos também não se entendem entre si. E como poderiam, visto que estão em desacordo consigo mesmos, cuja consciência é torturada pelas suas más ações, e que cometem atos dos quais logo se arrependem? É dessa forma que a Providência nos revela algo surpreendente: o fato de os malfeitores tornarem bons outros malfeitores. Alguns, com efeito, pelo fato de terem sido maltratados pelas piores pessoas que existem, passam a odiá-las e a odiar os que fazem o mal, e reencontram sua virtude moral procurando não mais se assemelhar àqueles que agora detestam. Somente a Divindade possui esse poder de transformar o mal em bem, servir-se dele e daí fazer desabrochar efeitos salutares. Pois há uma ordem geral que abarca todas as coisas; o que escapa de um lado aparece sempre de outro, a fim de que, no reino da Providência, nada seja deixado ao acaso, ‘pois só um Deus poderia explicar esses mistérios?’” “Mas acho difícil falar dessas coisas como se eu fosse um deus.10” “Não há homem algum que possa compreender apenas com seus recursos nem explicar com palavras todo o mecanismo da obra divina. Que baste, portanto, ter compreendido apenas isto: é o mesmo Deus, criador de todos os seres, que dispõe todas as coisas orientando-as para o bem e que, do mesmo modo, assimila e mantém próximos a si todos os seres por ele criados, servindo-se do Destino para eliminar o mal de onde se exerce a atividade divina. E é dessa forma que, se observas a repartição que efetua a Providência daquilo que se acredita ocorrer ao acaso sobre a Terra, poderás ver que não há aí nenhum mal. Mas percebo que teu espírito, fatigado pela dificuldade dos raciocínios e esgotado pela gravidade do assunto, anseia impacientemente pelas doçuras da poesia. Bebe então desse doce sumo e encontrarás forças para ir mais longe.