Jean Daniélou — PLATONISMO E TEOLOGIA MÍSTICA
— mystikou philematos
Não esgotamos com isto o simbolismo da Cena da Sarça Ardente. A «discalceatio» dela não constitui com efeito senão o primeiro estágio, o despojamento do homem antigo, a participação no mistério da morte do Cristo. É seguido da «iluminação» da alma pela Sarça Ardente que representa o aspecto positivo, a transfiguração pela união ao Cristo ressuscitado. Estamos com direito aqui de ver neste episódio uma figura do nascimento espiritual. Gregório com efeito, em um texto que já citamos, interpreta formalmente esta «iluminação» da entrada na vida espiritual. «Depois que a alma se afastou de seu apego ao mal — é o que figura a «discalceatio» — ela deseja aproximar sua boca da fonte da luz (te pege tou photos) pelo beijo sacramental: ela está também cercada da luz de verdade (te photi tes aletheias) e lavada pela água do negrume da ignorância.
Este texto é tanto mais interessante que aqui é a segunda parte do mistério, o photismos cujo aspecto sacramental é sublinhado. A palavra phos assim evoca o nome mesmo de photismos pelo qual a antiguidade cristã designava o sacramento da regeneração. Além do mais a iluminação é assimilada à ablução pela água. Ora o simbolismo sacramental desta aparece claramente pela aproximação com uma passagem como aquela onde encontramos as mesmas palavras que em nosso texto: «Depois que Paulo depositou na água sacramental (mystikou) a sujeira da ignorância (agnoias) e do erro, foi transformado em um estado mais divino» (XLVI). Observaremos aqui ainda que o batismo é considerado sobretudo como a renúncia ao erro, como abjuração, o que dele é um aspecto essencial. Enfim a expressão de beijo sacramental, mystikou , é também alusão direta ao batismo. Aí retornaremos a respeito de outras teoria análogas.
Esta iluminação é descrita na Vida de Moisés; primeiramente Gregório nota que ela tem por instrumento o Verbo encarnado. E eis aí um elemento capital que nos situa na mística realista e sacramental da qual falávamos há pouco. O sacramento, o beijo místico, tem por objetivo pôr a alma em contato com o Verbo encarnado, de quem só pode lhe vir luz e graça: «Que se é uma Sarça de espinhos ardente por meio da qual a alma do Profeta é iluminada (kataphotizetai), isso não é sem interesse para nossa investigação. Se com efeito a verdade é Deus e se ela é também Luz (phos), o texto nos mostra que a conduta da virtude não leva ao conhecimento desta Luz que se abaixou até a natureza humana. É tão mais importante sublinhar que o Verbo Encarnado é a fonte da iluminação, qie o conteúdo da iluminação arrisca de nos parecer mais filosófico. Encontramos aí este problema que encontramos tão frequentemente, da expressão em termos filosóficos, de uma doutrina cujo contexto nos mostra que dela deve ser entendida de outro modo. Gregório descreve com efeito assim o conteúdo da iluminação: «O que Moisés, à luz da teofania, me parece ter então compreendido, é que nenhuma das coisas que caem sob os sentidos não subsiste realmente, fora do Ser transcendente ao qual todo o universo está suspenso. Em nenhum ser fora dele, a inteligência não acha com efeito este suficiência que lhe permitiria existir fora de sua participação ao ser. O ser verdadeiramente real, é aquele que é imutável (osautos ekon aei), que não está sujeito nem ao crescimento nem à diminuição (to anauxes kai ameioton)…, do qual todo o resto participa (metekomenon) e que não sofre diminuição pelo fato desta participação» (XLIV). Estamos aqui em pleno platonismo. As expressões são aquelas mesmas de Platão no Banquete] (210E-211B). E no entanto trata-se aqui da iluminação da alma pelo Verbo Encarnado. A linguagem filosófica é aqui simbólica como a linguagem bíblica, uma e outra designam a mesma realidade mística do Verbo vivendo na Igreja e comunicando a luz pelo contato sacramental.