Atos de Tomé (MRMC) – Análise

A primeira parte do texto dos Atos (Ato I e II) narra a viagem de Tomé para oriente, disfarçado (por imposição de Jesus, que lhe surge depois da ascensão) de escravo carpinteiro e construtor; vendido a Habannes, um mercador enviado pelo rei indiano Gundafor1), o apóstolo dispõe-se a construir um palácio para o soberano, que lhe fornece grandes somas de ouro e prata para pagar a construção; mas em vez de construir o palácio, Tomé distribui o ouro e a prata pelo reino, em nome de Gundafor, e, interrogado por este, diz-lhe que o palácio foi construído no céu e que ele só o poderá ver depois de morto (§.18-20); Gundafor, sentindo-se defraudado, ordena a prisão de Tomé e condena-o a morrer queimado; Gad, o irmão do rei, morre entretanto e a sua alma, ao ser levada ao céu, vê o palácio de Gundafor e pede para renascer para o poder comprar ao rei; Gundafor, assim informado que o palácio existe realmente, liberta o apóstolo, converte-se e é batizado, tal como o irmão (§.21-25).

Para além desta história, de que certos elementos ressurgem explicitamente na Carta do Preste João (§.56 da Carta: o palácio do Preste João foi construído à imagem do palácio construído para Gundafor), os Atos incluem um segundo relato, mais desenvolvido, que põe em confronto Tomé e um outro soberano indiano, Mazdai ou Misdeus, e que termina com o martírio e morte do apóstolo (Atos IX a XIII): advogando a temperança, a castidade, a purificação, como condição de uma conversão verdadeira, Tomé está na origem de conflitos conjugais entre maridos não convertidos (Mazdaï e Karish, seu parente) e mulheres que, ao converterem-se, fizeram votos de castidade (Migdônia, mulher de Karish, e Tertia, a rainha) (Atos IX-XI); acusado de feitiçaria, Tomé é aprisionado e condenado a ser torturado com ferros em brasa, mas sobrevive ileso devido a um milagre em que a água brota do chão extinguindo o fogo e inundando a cidade (§.140); converte o filho de Mazdaï, Vizan, e um general, Sifur (Ato XII); graças a um novo milagre, as portas da prisão abrem-se durante a noite e Tomé sai para batizar a mulher, o filho e a nora do rei (Ato XIII); antes de ser martirizado, apunhalado no cimo de uma montanha por dois guardas de Mazdaï, nomeia Sifur padre e Vizan diácono (§.163-169; cfr. figuras 40 e 42); depois da sua morte, aparece-lhe em espírito e, e apesar de o seu túmulo se encontrar vazio (o texto faz referência ao fato de um discípulo ter transportado o corpo para o Ocidente), um novo milagre se produz: tendo um dos filhos de Mazdaï sido possuído por um demônio, é curado graças ao retirado do túmulo, e Sifur converte Mazdaï ao cristianismo (§.170).

O fato de, nesta segunda narrativa indiana dos Atos, a relação entre Tomé e Vizan poder ser invocada como fonte indireta da relação expressa na Carta entre o «patriarca de S. Tomé» e o Preste João (que supõe nomeadamente a identificação deste com Vizan: Slessarev, 1959:89-92, 121 figura 60), e de o referido palácio de Gundafor, na primeira parte, constituir o molde daquele que é longamente descrito na Carta, parece legitimar um tratamento comparativo entre os dois textos. Mas de momento importa analisar a sobreposição parcial de motivos evidenciada pela leitura da primeira e da segunda narrativa dos Atos que enfatiza o modus convertendi particular do apóstolo. O confronto que opõe, num e noutro caso, Tomé a um soberano «indiano» pagão resulta de uma ação socialmente perturbadora e ilegítima: Tomé interfere na relação entre Gundafor e os seus súbditos substituindo-se a ele, oferecendo-lhes abusivamente, em seu nome, o ouro destinado ao palácio; interfere nas relações familiares e conjugais dos soberanos fazendo opor entre si irmãos (Gundafor e Gad), pai e filho (Mazdaï e Vizan), marido e mulher (Mazdaï e Tertia, Karish e Migdónia). Estas disjunções (inicialmente) reprovadas, no âmbito das relações de soberania e de parentesco, validam um quadro (final) de conjunções que opera ao nível simultaneamente cosmológico (conjunção entre o Céu e a Terra, exemplificado na construção do palácio celeste, na ascensão de Gad e no martírio de Tomé no topo da montanha) e teológico (conjunção espiritual entre os neófitos convertidos e batizados e a divindade cristã).

É importante verificar que esta validação, no contexto de um projeto apostólico de tom fortemente ascético — a dissolução da riqueza material é a condição de acesso ao palácio celeste, a temperança alimentar e a castidade sexual são condições de pureza espiritual, o parentesco e a família constituem obstáculos à criação de laços comunitários espirituais —, é caraterizada por uma ambiguidade estrutural importante: a ação apostólica de Tomé é apresentada como uma atividade fraudulenta (Tomé disfarça-se de escravo arquitecto perante Gundafor e é acusado de seduzir as mulheres de Karish e de Mazdaï) e perturbadora da ordem social e familiar (causa a desobediência conjugal e filial na família de Mazdaï); a sua influência espiritual é devida, na perspectiva dos não-convertidos, a atos de feitiçaria e possessão, e nessa medida semelhante às ações demoníacas: como o Diabo, Tomé disfarça-se sob aparências impuras e perturba as relações conjugais. Sob a aparência de escravo, ou de mendigo estrangeiro, Tomé como que lança um ataque no seio da instituição da soberania indiana, provocando, pela conversão à nova fé cristã, a disjunção interna da ordem social e familiar. Este ataque a um universo sob o domínio do Diabo conflui, para os convertidos, no ritual do batismo, entendido como ato de purificação individual inicial que possibilita um primeiro grau de (re)identificação espiritual com a divindade2. Para Tomé, este mesmo ataque resulta no martírio na montanha e na ascensão final, que, significando uma purificação e conjunção final do apóstolo com a divindade através do abandono do suporte carnal, reproduz o seu sacrifício messiânico no contexto indiano que inaugura a possibilidade de expansão da ordem comunitária baseada na nova fé (através da nomeação de Sifur e Vizan como dignatários eclesiásticos).


  1. Sobre Gundafor e as referências históricas a Gundnaphar, ver Slessarev, 1959:15-16, 30, 105-n.8; Bussagli & Chiappori, 1985:63-67. (vide Gondophares 

  2. Que possibilita a assunção do estatuto de rei celeste (§.138); esta ideia é correlacionável com a da construção do palácio celeste de Gundafor, exposta na primeira parte dos Atos.