Athayde Merton

Thomas Merton — Diário da Ásia
GESTO E MENSAGEM DE UM SANTO DO SÉCULO XX
por Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima)

Trinta e um de janeiro de 1915. Nas trincheiras enlameadas do Norte da França agoniza o século XIX. Enquanto na paz dos Pireneus, no burgo perdido de Prades, que só muito mais tarde seria universalmente famoso pelo exílio de Casals, nasce uma criança, que iria ser uma das figuras mais representativas do século XX. Um santo, como Charles de Foucauld. Quem sabe por que misteriosos encontros humanos, um obscuro pianista neozelandês e uma jovem norte-americana davam ao mundo moderno, nessa data, um signum cui contradicetur, Thomas Merton. Durante as festas de fim de ano percorri sua biografia por Edward Rice, que Odilo Costa, filho me trouxe dos Estados Unidos, por sua grande generosidade de poeta e amigo. Já conhecia o livro de vista, com suas esplêndidas fotografias, nas mãos da ‘Irmã Emanuel de Souza e Silva, a eximia tradutora de Merton. No livro de Rice, seu amigo dos foolish years da juventude, e que, anos atrás, andou pelo Brasil, acompanhamos de perto as vicissitudes iniciais dessa alma extraordinária, que tudo experimentou à busca de si mesmo, antes de se encontrar em Deus. Merton polariza, seguramente, os mais radicais extremos do nosso século, na busca do mundo, na revolta contra ele e na sua superação pela santidade.

Foi um desses angry young men, inconformados com o legado recebido das velhas gerações. Se foi durante a Primeira Grande Guerra, quando morria o século XIX, que veio ao mundo o futuro autor da Montanha dos Sete Patamares, que abalou a inteligentsia norte-americana na década de 50, foi durante a Segunda Grande Guerra, quando o seu sweet brother, John Paul, mergulhou para a morte num avião da RAF, que o futuro Father Louis, trapista, escreveu os seus primeiros livros de protesto e acusação contra o século da riqueza capitalista, da violência bélica e da impostura totalitária. Já em 1938, no limiar da nova catástrofe universal, tinha o jovem Thomas percorrido sua sólida e vasta formação cultural, na França de Montauban e na Inglaterra de Cambridge, escrito ou publicado seus primeiros romances, poemas ou ensaios, no próprio The New York Times ou na revista universitária da Universidade de Columbia, pois já então se transferira para os Estados Unidos, na residência dos avós, depois de falecidos os pais. O romance Labirinto, assim como as notas autobiográficas de sua agitada juventude universitária, em Nova Iorque, foram por ele infelizmente destruídos. Mas restaram o The Journal of my Escape from the Nazis (1941) e o Secular Journal, que tive ocasião de traduzir e só foi publicado depois de sua morte.

Em 1938, depois de esgotadas as suas experiências sociais e intelectuais é que pede para ser batizado. Muito antes, porém, em Roma, durante uma viagem feita aos 16 anos (sic), é que sentiu bruscamente, como S. Paulo, em sua alma “completamente morta”, a revelação pessoal e os primeiros indícios de sua invencível chamada, a que aliás só muito mais tarde iria responder. “Foi no meu quarto. Era noite. No escuro. Subitamente me pareceu ver meu pai, falecido mais de um ano antes. Sua presença foi tão viva e real como se me tocasse ou me falasse. Como um relâmpago. Fui dominado por uma visão profunda de minha miséria moral, de minha corrupção e trans-passado por uma luz que me revelou de certo modo o que eu era, enchendo-me de horror e revolta contra mim mesmo. Minha alma apelou por uma fuga, uma evasão, uma liberdade, com uma intensidade e uma urgência que não se assemelhavam a nada que eu tivesse anteriormente sentido. Agora compreendo que foi o primeiro momento de minha vida em que realmente comecei a rezar. Não com meus lábios, minha inteligência e minha imaginação, mas do fundo das raízes mais profundas de minha vida e de meu ser, rezando a um Deus que eu nunca chegara a conhecer e que vinha a mim do fundo de Suas trevas para me ajudar a libertar-me das milhares de coisas terríveis que escravizavam minha vontade”. (The Seven Storey Mountain. 1948, pág. 98-111).

Esse relâmpago, que iria resumir por assim dizer toda a sua visão mística da vida, durou até sua morte. Mas levaria ainda 10 anos, de 1931 a 1941, a dobrar o seu apego ao mundo e a pacificar a sua infinita inquietação moral e intelectual. Foi um decênio de ânsia desesperada de viver integralmente essa transmutação de séculos e de eras, de que sua vida e sua morte prematura seriam tão luminosamente simbólicas. Vida de viagens tanto reais como espirituais, entre a Europa, os Estados Unidos e a América Latina (Cuba) que aliás sempre o atraiu profundamente. Anos loucos, patéticos desse fim da belle époque, antes e depois das duas grandes guerras, que lembram o que Scott Fitzgerald descreveu em seus romances e os levou, a ele e a Zelda, à loucura, à intoxicação, à miséria e à morte.

As Zeldas, entretanto, não conseguiram desviar Merton daquela luz que em Roma, numa noite pascaliana, o subjugara. Depois de esgotada, por mais de um decênio após aquela noite romana, ao sair da adolescência, a experiência da mocidade, desvanecedora de todas as ilusões com o mundo moderno (sem excluir seu namoro com o comunismo, na Universidade de Columbia), pensou Merton nos franciscanos. A Pobreza, como antídoto ao mal secreto e corrosivo do mundo moderno, isto é, a paixão do Dinheiro, como a denunciara Péguy, a pobreza sempre o seduzira. Mas ainda achou pouco. Alma de extremos como era, buscou uma solução mais radical A mais exigente quanto à renúncia ao mundo. A Trapa. O silêncio e o isolamento. Entrou, em 1941, no Mosteiro de Getsêmani, no Kentucky, querendo para sempre virar as costas ao mundo. Não era esse porém, como veremos, o apelo misterioso que recebera na própria Roma. Iria morrer, 27 anos mais tarde, na Tailândia. Em pleno mundo. Pois é possível, como lembra Edward Rice, que nunca mais voltasse ao seu mosteiro. Mas deixando, ao mundo moderno, um gesto e uma mensagem, que marcaram para sempre o nosso século.

Toda vida bem vivida exige uma mensagem e um gesto. A mensagem é a palavra que leve os outros à ação. O gesto é a ação que põe à prova a palavra de quem a pronunciou. O gesto de Thomas Merton foi a sua entrada, em 1941, para a mais rigorosa das Ordens religiosas, depois de uma das mocidades mais agitadas e exigentes do nosso século. Sua palavra aos homens do nosso tempo foi a sequência de oito ou 10 livros da prosa mais substancial à poesia mais requintada, pregando ao mais dinâmico dos séculos a primazia da vida contemplativa sobre a vida ativa. Isso no âmago da civilização tecnológica mais avançada, nos Estados Unidos e indo morrer, no Extremo Oriente, em pleno congresso de monaquismo ocidental e oriental depois de pronunciar uma conferência sensacional sobre 0 Marxismo e as Perspectivas Monásticas. Antes de partir para essa conferência, em Bancoc, na Tailandia, para uma confrontação entre o espírito contemplativo oriental e o espírito contemplativo ocidental, que já fora a preocupação de Bergson, nos últimos anos de sua vida, encontrara-se em Los Angeles com estudantes marxistas, num congresso universitário. Revelando a um desses sua qualidade de monge, recebeu a seguinte resposta; “nós também somos”. O sentido desse diálogo por ele evocado no próprio dia da sua morte é a proclamação da máxima? opção deste nosso século de radicalismo extremista, entre os poios da vida ativa integral, representada pelo marxismo e o da vida integral representada pelo monaquismo.

Esse monaquismo, entretanto, em seu sentido autêntico, não nega a legitimidade da vida ativa e apenas a sua superação, como, segundo suas palavras: “A fé não é a negação da dúvida mas a sua superação ” (The Asian Journal, 1973 pág. 445). O sentido de sua mensagem sobre a superação da vida ativa não é pois, a negação desta, como a fé religiosa não é a negação da dúvida. Pelo contrário: “A fé significa a dúvida. A fé não é a supressão da dúvida. É a superação da dúvida, conquistada através dela. O homem de fé que nunca experimentou a dúvida não é um homem de fé”. (Op. cit. pág. 306). A mesma relação que, em sua mensagem, ele colocou entre a atmosfera do mundo moderno, em que a permissividade moral e a contestação de todos os valores, inclusive o das conclusões da própria ciência, é análoga à que ele estabelece entre vida ativa e vida contemplativa. E particularmente na vida monástica, que representa, no seio de um mundo voltado essencialmente para a ação, tanto no Oriente como no Ocidente, a primazia da contemplação.

“O que é essencial na vida monástica não é representado nem por construções de tipo especial, nem por vestuários deste ou daquele corte, nem mesmo está contido em uma Regra. Representa alguma coisa que supera a própria regra. Concentra-se na procura de uma transmutação interior profunda. Tudo mais deve ser colocado a serviço dessa finalidade.. . 0 monge pertence ao mundo mas o mundo pertence a ele na medida em que ele se dispôs a libertar-se dele, mas para o libertar. Não podemos mergulhar no mundo e nos deixarmos carregar por ele. Isso não representa qualquer espécie de salvação. Se quisermos retirar da água alguém que se afoga, devemos pisar em algo de firme. . . Nada faremos se apenas nos jogarmos nágua e nos afogarmos com ele” (op. cit. pág. 341).

Por isso mesmo é que, nesse seu testamento espiritual, a chave dessa liberdade transcendental que a vida monástica pode e deve trazer ao mundo moderno é a liberação de cada homem em face da sua crescente opressão pelas estruturas. Sem elas não há vida social possível. Mas sem liberdade e amor não há vida pessoal possível. Uma vida interior profunda é a base de toda vida exterior fecunda.

Essa a função especifica da vida monástica na vida moderna e, em termos gerais, da vida contemplativa, mesmo em plena ação. Da vida de oração e de silêncio interior no âmago de uma civilização tecnológica, dominada pela máquina, pela poluição da natureza e pela morte do silêncio. “O monge é essencialmente aquele que assume uma atitude crítica em face do mundo e de suas estruturas. . . A recusa que o mundo afeta em relação ao monge. . . se explica pela intenção que este manifesta de mudar o mundo. Isso coloca o monge no mesmo plano do marxista, pois esse dirige sua crítica dialética contra as estruturas sociais (capitalistas) por meio de uma mutação revolucionária. A diferença entre o monge e o marxista, entretanto, é fundamental, pois este propõe essa reforma do mundo por uma mudança das subestruturas econômicas da sociedade, ao passo que o monge a procura por meio de uma mudança da consciência humana “. (Op. cit. pág. 330).

Essa conferência sobre o Marxismo e as Perspectivas Monásticas, do próprio dia de sua morte, é a chave de sua mensagem, ao mesmo tempo mística e pragmática, da vida monástica, como presença no mundo e não como ausência do mundo. As últimas palavras dessa conferência, escritas no simples sentido de se retirar da sala, possuem no entanto um sentido simbólico: “So I will disappear”. Os santos só atuam realmente no mundo, depois de sua morte. Foi o que sucedeu, pouco antes dele, com Charles de Foucauld, no inicio do século. Im morrendo solitário na fímbria do deserto africano. Outro morrendo, também solitário, no limiar da floresta asiática. Ambos nos deixando a mesma mensagem da supremacia dos valores espirituais, sem negação dos valores materiais, mas integrando estes naqueles, como foi igualmente a mensagem de um terceiro da mesma categoria desses dois apóstolos do mais moderno cristianismo, Teilhard de Chardin. Mensagem de salvação do mundo moderno ou eterno, não pela violência, ou pelo poder, ou pela riqueza, mas pela liberdade que só o amor leva à sua plenitude. Pois não há maior servidão do que a liberdade sem amor. E tanto o gesto como a mensagem dessas três vidas humanas excepcionais mas tão representativas do nosso século, coincidem afinal com a mensagem e o gesto de todos os santos em todos os tempos.