Não ficou o menor vestígio nos escritos testamentários de que as explicações dos Doze, ou dos Setenta (ou Setenta dois), organizadas por Jesus, se efetuaram antes da morte e ressurreição do Mestre. É tal a carência de preocupação evangélica por consignar algum dado a respeito do cumprimento de tais viagens “de dois em dois”, que seu silêncio supõe uma séria dificuldade para aceitar a interpretação “manifesta”, ou ao menos, “não figurada”, destes dois blocos de envios missionários; em especial, se se pensa nesses Setenta (ou Setenta e dois) dos que fala Lucas que “os enviou de dois em dois diante de si, a todas as cidades e sítios onde ele devia ir”.
*Qualquer que fosse o significado oculto da organização de “enviados” de “dois em dois”, sua única expressão conhecida é a fórmula de enumeração dos Doze em parelhas adotada por Mateus e Lucas. Há que assinalar ademais, que o fato de ser “Doze” resulta de maior relevância que os nomes dos apóstolos. Os evangelistas assinalam sempre Doze pontualmente (inclusive, nos Atos, há cuidado em apontar que após a morte de Judas Iscariotes, são somente Onze); mas no terceiro evangelho se substitui o nome de Tadeu, pelo de Tiago o de Alfeu. A explicação sugerida por alguns exegetas de que Tadeu e Judas de Tiago são dois nomes distintos usados para designar uma mesma pessoa, não deixa de ser um arbítrio fácil, mas pouco científico, de resolver a dificuldade. O problema capital resta de pé: o que tem verdadeira importância, o que querem consignar ante tudo os evangelistas, não são os nomes dos doze apóstolos, senão a instituição dos Doze.
*Alguns dos poucos “envios” que se mencionam nos evangelhos são o efetuado a um povo de samaritanos para preparar pousada (Lc 9,53), e os dois acontecimentos misteriosos da “ jumenta presa, e um jumentinho com ela”, encontrados por dois discípulos próximo de Betfagé e a busca da casa para celebrar a Páscoa do Cordeiro.
O “diante de si”, invalida a presunção de que Cristo pensava que esta obra se efetuasse após sua morte. Mas se tinha que se cumprir durante a vida “manifesta” de Jesus, não há dúvida de que a diferença entre as muitas visitas realizadas pelo Mestre durante seus últimos tempos e o que pode render a atividade visitadora de trinta e cinco, ou trinta e seis parelhas é demasiado evidente para nos permitir tomar ao pé da letra as instruções dadas por Jesus à instituição dos Setenta.
A menção lucana de uma segunda instituição discipular, fez muitos refletirem, e não sem motivo, no paralelo que poderiam apresentar estes dois grupos com as duas narrações da multiplicação dos pães. Em verdade, ambas coisas estão estreitamente relacionadas desde alguns pontos de vista.
- Segundo se diz em meios teológicos, a dupla multiplicação dos pães supões a coexistência de duas tradições paralelas de um mesmo caso; uma procedente do meio palestinense (margem ocidental do lago) se resolve em doze canastras, como as doze tribos de Israel; a outra, procedente de um meio cristão nascido do paganismo (margem oriental), termina em sete alcofas como as sete nações pagãs de Canaã antes da conquista. Os lugares evangélicos onde se menciona a multiplicação dos pães, são para a primeira multiplicação (de 12 canastras) — Mt 14,13-21; Mc 6,30-44; Lc 9,10-17. Quanto à segunda multiplicação dos pães (resíduo, sete alcofas), só se menciona em Mt 15, 32-39, Mc 8, 1-10. Alguém se perguntou se a não inclusão lucana da segunda multiplicação dos pães está relacionada com ser Lucas o único evangelista que se refere ao bloco missionário dos Setenta.
Como efeito sobrevindo por comer o fruto semeado (vide Parabola do Semeador e Milagre da Multiplicação), há que entender a instituição dos Doze, não somente dos doze apóstolos de Jesus, senão de todos os que por seu trabalho como trabalhadores “eleitos” da grande messe, alcançaram o conhecimento perfeito, a epignosis, que só vem do pão de Cristo, o qual o comeram até completar as três medidas. Como se explica “em parábola”, tais almas são como a mulher que tomou a levedura do Reino dos Céus e “a pôs em três medidas de farinha, até que fermentou tudo” (Parabola do Semeador).
Há outra instituição mistérica: a dos Sete. Foi explicada por Lucas nos Atos, como posta à serviço ou diaconia dos Doze. A virtude que corresponde aos Sete, foi descrita como plenitude de Espírito e de Sabedoria, quer dizer, conhecimento suficiente do Primeiro Mistério. Por sua parte, os Doze se reservavam a oração e o mistério da Palavra. Lida esta perícope com o jogo interlinear que às vezes emprega Lucas, é possível entender que ingressam na corporação espiritual dos Doze todos aqueles que alcançam o conhecimento perfeito da verdade em Cristo. Os Sete, são conhecedores daquela sabedoria que vem do Espírito, mas em grua de imperfeição.
No terceiro evangelho aparece o Sete, mas não facilmente reconhecível pois chega decuplicado em Setenta, e em alguns manuscritos, em Setenta e dois. Aos membros desta instituição, aos Sete, se os encomenda o serviço auxiliar na regeneração da messe. A diferença de fruto obtido pelos Doze e pelos Sete, fica bem esclarecida através dos termos dos dois discursos missionais.
Há nestes discursos, expostos com especial extensão — por Mateus o dirigido aos Doze e por Lucas os escrito aos Sete — muitas expressões de “peregrinação”, comuns à obra missionária que compete indistintamente aos membros das duas instituições. Essa é a vertente “manifesta”, mas o viver espiritual de todo homem é sempre figura de uma peregrinação, um retorno ou chegada final à Casa do Pai, e daí que tudo nesta viagem pode ser “voltado” para uma significação de signo oculto.
Em tal caso, explica o relato, de maneira conjunta, a obra interior da alma para regenerar a messe, sua semeadura própria, e seu comportamento no mundo para facilitar que nos “muitos” ressuscite o espírito “cativo”, que dorme em seu interior.
Assim é como as cidades, sítios, ou casas que em seu recorrido de viagem visita a alma errante, são mais figuras das “mansões” de conhecimento que cada alma desperta em si mesma, ou configuração das almas com as quais se cruza durante sua peregrinação no mundo, que lugares materiais. Há que entender que cada penetração, ou descida da luz, é como uma chegada a uma nova vivenda, ou lugar, uma esfera nova de conhecimento para a alma.
Outras paisagens explicam a imprescindível purificação própria e também o cuidado de semear pureza para que outros recolham o fruto que levam em si mesmos. De igual maneira, não falta a incitação à pobreza ou sobriedade em espírito, como porta à bem-aventurança.
Por último, o relato de Mateus aos Doze e o lucano aos Sete, se separam no que toca a certas exigências enquanto ao Reino, para adequar-se com exatidão ao logo e merecimento específico dos membros de uma ou outra instituição.
Esta é a exegese geral dos dois relatos de que falamos; mas quanto a certas peripécias concretas e para maior fidelidade, talvez convenha traçar um breve comentário específico.