Apoftegmas do Abade Agatão

D. Estevão Bettencourt — Apoftegmas — a sabedoria dos antigos monges
DO ABADE AGATÃO
1. Disse o Abade Pedro, o discípulo do Abade Lote: «Estávamos certa vez na cela do Abade Agatão, quando foi ter com ele um irmão que dizia : «Quero morar com os irmãos; dize-me como hei de viver com eles». Respondeu-lhe o ancião : «Como no primeiro dia em que te chegares a eles, assim todos os dias da tua vida conserva a tua qualidade de estranho, de modo a não teres familiaridade com eles». Perguntou então o Abade Macário: «E que importa a familiaridade?» Respondeu-lhe o ancião : «A familiaridade se parece com um calor muito ardente, o qual, sempre que se produz, afugenta a todos e destrói os frutos das árvores». Interrogou o Abade Macário: «Tão daninha assim será a familiaridade?» Respondeu o Abade Agatão: «Não há outro afeto pior do que a familiaridade; com efeito, é a matriz de todas as paixões. É preciso que o operário 1 não experimente familiaridade, mesmo que viva a sós na cela. Sei que um irmão, tendo morado muito tempo em sua cela, onde havia um leitozinho, disse : ‘Teria mudado de cela sem ter percebido nem mesmo o leitozinho, se outro não me tivesse chamado a atenção’. Um tal é realmente operário e guerreiro».

2. Disse o Abade Agatão: «É preciso que o monge não deixe que a consciência o acuse em coisa nenhuma».

3. Disse também: «Sem a observância dos preceitos divinos, o homem não progride em uma só virtude que seja».

4. Disse ainda: «Nunca adormeci tendo alguma coisa contra alguém; nem, enquanto o podia, deixei que alguém fosse dormir tendo algo contra mim».

5. A respeito do Abade Agatão diziam que o foram procurar alguns homens, os quais tinham

ouvido dizer que possuía grande discernimento. E, querendo experimentar se se enfurecia, disseram-lhe: «Tu és Agatão?» Ouvimos a teu respeito que és fornicador e soberbo». Respondeu: «De fato, assim é». Acrescentaram: «Tu és Agatão, o tagarela e difamador?» Respondeu: «Sou». Disseram mais : «Tu és Agatão, o herege?» Respondeu: «Não sou herege». Solicitaram-no, então, nestes termos: «Dize-nos por que é que aceitaste tão graves coisas que te dissemos; esta última, porém, não a suportaste». Respondeu-lhes: «Aquelas, eu as ponho em minha conta, pois são de proveito à minha alma; ser herege, porém, significa separar-se de Deus, e não me quero separar de Deus». Tendo ouvido isto, admiraram o seu discernimento, e foram-se edificados.

6 . Narraram do Abade Agatão que passou muito tempo a construir a cela com os seus discípulos; tendo-a terminado, retiraram-se nela para a habitar. Na primeira semana, porém, viu algo que não o edificava, e disse aos discípulos: «Levantai-vos, vamo-nos daqui». Ora estes perturbaram-se muito dizendo: «Se de qualquer modo já pensavas em te mudar, por que é que sofremos tão grande fadiga para construir a cela? De novo os homens, escandalizados por nós, hão de dizer : «Eis que os instáveis mais uma vez se mudaram». Vendo-os, então, pusilânimes, respondeu-lhes: «Se se escandalizarem alguns outros se edificarão, dizendo: «Bem-aventurados estes, pois, por causa de Deus, se mudaram e tudo desprezaram’. Quem, pois, quer vir, venha; eu agora me vou». Atiraram-se, então, por terra, rogando-lhe que lhes concedesse partir com ele, até que obtiveram licença.

7. Disseram também a respeito dele que, muitas vezes, mudava de pouso tendo apenas a sua foicezinha no cesto.

8. Perguntaram uma vez ao Abade Agatão o que é maior: o trabalho do corpo ou a disciplina interior (da alma). Respondeu o ancião: «O homem se parece com uma árvore: o trabalho do corpo é como que a folhagem, enquanto a disciplina da alma é como que o fruto. Pois que, conforme está escrito, ‘toda árvore que não produz fruto bom, será cortada e atirada ao fogo’ (Mt 3, 10), é evidente que todo o nosso esforço deve visar ao fruto, isto é, à disciplina da alma. Contudo também são necessários o envoltório e o ornamento da folhagem, que são o trabalho do corpo».

9. Perguntaram-lhe ainda os irmãos: «Qual a virtude, ó Pai, que entre as demais exige maior labor?» Respondeu-lhes: «Desculpai-me, julgo que não há labor igual ao da oração a Deus. Pois, todas as vezes que o homem quer orar, tentam os inimigos arredá-lo; bem sabem que não são suplantados por outro meio do que pela oração a Deus. Na prática de qualquer virtude que o homem assuma á si, se persevera, consegue tranquilidade; a oração, porém, até o último hálito requer luta».

10. O Abade Agatão era sábio de mente, diligente de corpo; em geral bastava a si mesmo, tanto no trabalho manual como na alimentação e no vestuário.

11. O mesmo caminhava com os seus discípulos, quando um destes encontrou na estrada um grãozinho verde de ervilha e perguntou ao ancião: «Pai, mandas que eu o recolha?» O ancião olhou-o com admiração e interrogou: «Fostes tu que aí o puseste?» Respondeu o irmão: «Não». E o ancião retrucou: «Como então queres recolher o que não puseste ?»

12. Um irmão foi ter com o Abade Agatão, dizendo : «Permite-me que habite contigo». Ora, quando caminhava pela estrada, encontrara pequena pedra de nitro, e a tomara consigo. Disse-lhe, pois, o ancião: «Onde encontraste esse seixo?» Respondeu o irmão: «Encontrei-o na estrada ao caminhar, e recolhi-o». Acrescentou o ancião: «Se vinhas habitar comigo, como ousaste recolher o que não havias semeado?» E mandou-lhe colocar de novo o seixo no lugar donde o tirara.

13. Um irmão dirigiu-se ao ancião, dizendo: «Um co preceito me foi dado, e, por causa dele, há luta em mim; queria sair para cumpri-lo, mas temo a luta». Disse-lhe o ancião: «Se estivesse Agatão em tuas condições, cumpriria o preceito e venceria a luta».

14. Reuniu-se na Cétia, para tratar de determinada questão, um conselho, o qual lavrou a respectiva sentença. Depois do mesmo, chegou-se o Abade Agatão aos monges, dizendo: «Não resolvestes o caso devidamente». Perguntaram-lhe: «Tu quem és para dizer uma palavra sequer?» Respondeu: «Sou filho de homem. Pois está escrito : ‘Se, de fato, proferis a justiça, sentenciai o que é reto, ó filhos dos homens’» (Sl 57, 2).

15. Diziam do Abade Agatão que passou três anos com uma pedra na boca até que adquiriu o hábito do silêncio.

16. Referiam também dele e do Abade Amum que, quando vendiam algum objeto, diziam uma vez o preço, e, o que se lhes dava, recebiam-no em silêncio e tranquilidade. Igualmente, quando queriam comprar alguma coisa, davam com silêncio o que se lhes dizia e tomavam o objeto, sem proferir nada absolutamente.

17. O mesmo Abade Agatão disse: «Nunca dei um ágape2; mas o dar e o receber eram para mim ágape (refeição): julgava que o lucro de meu irmão é obra de frutificação» 3.

18. O mesmo quando queria julgar alguma coisa que via, dizia dentro de si: «Agatão, não faças o mesmo». Com isto se apaziguava a sua mente.

19. O mesmo disse: «O homem irascível, ainda que ressuscite um morto, não é agradável a Deus».

20. Em certa época, o Abade Agatão teve dois discípulos que, separadamente, levavam vida eremítica. Um dia perguntou a um : «Como vives em tua cela?» Respondeu-lhe: «Jejuo até o pôr do sol, e então como dois pãezinhos». Disse: «Eis um regime digno, que não acarreta muita fadiga». E ao outro interrogou: «Como vives tu?» Respondeu : «Jejuo dois dias, no fim dos quais como dois pãezinhos». Disse-lhe então o ancião: «Lutas intensivamente sustentando duas pugnas, pois, se alguém come todos os dias e não se sacia, luta. Outros há que querem jejuar dois dias e saciar-se; tu, porém, duplicas o jejum e não te sacias».

21. Um irmão interrogou o Abade Agatão a respeito da fornicação. Respondeu-lhe este: «Vai, atira diante de Deus a tua fraqueza, e encontrarás sossego».

22. Certa vez adoeceram o Abade Agatão e outro dos anciãos. Ora, estando eles deitados na cela, um irmão lia o livro do Gênesis e chegou ao capítulo em que Jacó diz: «José não está, Simeão não está, e a Benjamim haveis de levar; assim fareis chegar em tristeza a minha velhice ao túmulo» (Gên 42, 36). Falou então o ancião: «Não te bastam os outros dez, ó Pai Jacó?» Disse o Abade Agatão: «Cala-te, ancião; se Deus tem alguém por justo, quem é que há de condenar?»

23. Disse o Abade Agatão: «Se alguém me fosse extremamente caro, e eu soubesse que ele me leva ao pecado, eu o afastaria de mim».

24. Disse também: «É preciso que, a toda hora, o homem se recorde do juízo de Deus».

25. Estando os irmãos a falar sobre a caridade, perguntou o Abade José: «Sabemos nós o que é caridade?» E contou, a respeito do Abade Agatão, que este tinha um canivete; foi ter com ele um irmão, o qual se pôs a louvar o objeto; o Abade, então, não o deixou partir sem que tivesse aceito o canivete».

26. Dizia o Abade Agatão: «Se me fosse possível encontrar um leproso e dar-lhe o meu corpo em troca do corpo dele, fá-lo-ia com prazer. Pois esta é a caridade perfeita».

27. Também dizia dele que, certa vez tendo ido à cidade para vender seus artefatos, encontrou na praça pública um homem atirado por terra, doente, o qual não tinha quem dele tratasse. Ora o ancião permaneceu com ele, tomando uma morada de aluguel, com o trabalho de suas mãos pagava o aluguel e as demais coisas de que necessitava o doente. Assim se deixou ficar quatro meses, até que estivesse curado o enfermo. Depois do que, o ancião voltou para a sua cela em paz.

28. Contava o Abade Daniel: «Antes que o Abade Arsênio viesse ter com meus Pais, também estes permaneciam com o Abade Agatão. Ora o Abade Agatão gostava do Abade Alexandre porque este era lutador4 e diligente.

Aconteceu que todos os discípulos de Agatão lavavam os seus fios de tear no rio; também o Abade Alexandre lavava diligentemente. Os outros irmãos, porém, disseram ao ancião: «O irmão Alexandre nada faz». O mesmo, querendo curá-los, disse-lhe: «Irmão Alexandre, lava bem, pois são fios de linho». Alexandre, tendo ouvido isto, entristeceu-se. Depois, porém, o ancião consolou-o, dizendo: «Então não sabia eu que trabalhas zelosamente? Todavia, disse-te aquilo, em presença deles, a fim de curar a sua mente pela tua obediência, irmão».

29 . A respeito do Abade Agatão narraram que se esforçava por cumprir todas as ordens. Quando navegavam em barco, era ele o primeiro a agarrar o cabo do remo; quando irmãos iam ter com ele, logo depois da oração, punha a mesa com as próprias mãos; com efeito, era cheio do amor de Deus. Quando estava próximo da morte, ficou três dias de olhos abertos e fixos. Os irmãos, então tocaram-no, dizendo: «Abade Agatão, onde estás?» Respondeu-lhes: «Estou colocado diante do tribunal de Deus». Perguntaram-lhe: «Também tu temes, ó Pai?»Respondeu-lhes: «Até agora fiz o que pude para observar os mandamentos de Deus; sou homem, porém; como hei de saber se meu esforço agradou a Deus?» Disseram-lhe os irmãos: «Não tens confiança em teu labor, executado conforme Deus?» Retrucou: «Não terei confiança, antes de me encontrar com Deus; pois um é o modo de julgar de Deus, outro o dos homens». Como o quisessem interrogar de novo, disse-lhes: «Praticai a caridade, não faleis mais comigo, pois estou atarefado». E morreu com alegria. Com efeito viam que ele partia como alguém que saúda os amigos e bem-amados. Tinha grande vigilância em tudo, e dizia: «Sem grande vigilância o homem não progride numa virtude sequer».

30. Certa vez o Abade Agatão dirigiu-se à cidade a fim de vender pequenos objetos, e encontrou um leproso à margem da estrada. Perguntou-lhe o leproso: «Aonde vais?» Respondeu o Abade Agatão: «Para a cidade a fim de vender objetos». Disse-lhe: «Sê caridoso, e leva-me para lá». Agatão, tomando-o nos braços, levou-o para a cidade. Rogou-lhe então o outro: «Onde venderes os objetos, lá coloca-me». Ele assim fez. Quando acabou de vender um objeto, perguntou-lhe o leproso: «Por quanto o vendeste?» Respondeu: «Por tanto». Disse-lhe o leproso: «Compra-me um pão». E aquele o comprou. E de novo vendeu outro objeto. Interrogou então o leproso: «E este, por quanto o vendeste ?» Respondeu : «Por tanto». E o mesmo retrucou : «Compra-me isto». Aquele comprou. Ora, quando terminou de vender todos os seus objetos e se queria ir, disse-lhe o leproso: «Vais embora?» Respondeu: «Sim». E aquele: «Sê de novo caridoso, e reconduze-me aonde me encontraste». E Agatão, tomando-o nos braços, carregou-o para seu antigo lugar. Este então lhe disse: «Bendito és, Agatão, pelo Senhor no céu e na terra». E o Abade, levantando os olhos, a ninguém viu. Com efeito, fora um anjo do Senhor que descera a fim de o experimentar.




  1. “Operário” é um dos termos com que se designava o monge na antiga literatura cristã. 

  2. Refeição comum que estreitava a caridade entre os irmãos 

  3. = obra de proveito para mim  

  4. “Asketes” = asceta, diz o texto original.