João da Cruz — Cântico Espiritual
Ao temperado vinho.
7. Este vinho temperado é outra mercê muito maior que Deus concede, algumas vezes, às almas já adiantadas, inebriando-as no Espírito Santo, com um vinho de amor, suave, saboroso e fortificante, e por isto lhe dá o nome de vinho temperado. Assim como este vinho especial é condimentado com muitas e diferentes substâncias que lhe dão fôrça e perfume, assim também este amor de Deus, concedido às almas já perfeitas, está condimentado e assentado no íntimo delas, e temperado com as virtudes que possuem. Este amor, aromatizado como o vinho, com tão preciosas especiarias, produz na alma tal vigor e abundância de suave embriaguez que, nestas visitas de Deus, a alma é movida com grande eficácia e força a dirigir ao seu Amado aquelas emissões, ou emanações de louvor, amor, reverência, e outros afetos, como já dissemos; ao mesmo tempo, sente admiráveis desejos de O servir e de padecer por Ele.
8. É preciso saber que esta graça da suave embriaguez não passa tão depressa como a do toque de centelha, pois é muito mais persistente. A centelha toca a alma e se extingue, embora seu efeito dure um pouco e chegue, mesmo algumas vezes, a prolongar-se muito; o vinho temperado, ao contrário, sempre dura por mais tempo, tanto ele como o seu efeito, de suave amor pelo espaço de um ou dois dias, em algumas ocasiões, e até por muitos dias seguidos. A intensidade, contudo, varia, pois não é sempre com o mesmo grau; algumas vezes diminui, outras cresce, sem depender da alma. Por vezes, acontece-lhe sentir, sem nada fazer de sua parte, que este vinho divino lhe vai embriagando a íntima substância, e ao mesmo tempo inflamando o espírito, conforme as palavras de David: «O meu coração abrasou-se dentro de mim; e na minha meditação inflamar-se-á o fogo» (SI 38, 4). As emissões provenientes desta embriaguez de amor duram às vezes todo o tempo em que a alma a experimenta; ocasiões há, contudo, em que sente a embriaguez sem as emissões. A intensidade destas, quando se produzem, é proporcional à embriaguez de amor. Quanto aos efeitos da centelha, dá-se o contrário, persistem mais do que ela mesma, pois são efeitos que deixa na alma; são muito mais incendidos do que os da embriaguez, pois esta divina centelha deixa por vezes a alma a abrasar-se e queimar-se em amor.
9. Já que falamos do vinho condimentado, será bom observar brevemente aqui a diferença existente entre o vinho limpo a que chamam vinho velho e o vinho novo; é a mesma diferença que há entre os antigos e novos amigos e servirá para dar aqui um pouco de doutrina aos espirituais. O vinho novo não tem ainda a borra assentada e separada, por isto está fermentando exteriormente, sem que se possa ainda avaliar a sua qualidade e força, — o que só se verá quando estiver bem assentada a borra e passar a fermentação. Até então, corre grande risco de toldar-se. Tem o gosto forte e desagradável, e faz mal a quem dele bebe muito, pois sua fôrça está ainda toda na borra. O vinho velho já tem assentada e eliminada a borra, e, portanto, já desapareceram aquelas fermentações superficiais que se veem no novo. Logo Se percebe a sua boa qualidade, sem que haja mais risco de toldar-se, pelo fato de não ter mais a efervescência e fermentação da borra que o poderia prejudicar. O vinho bem assentado, efetivamente, é raro que se turve ou estrague, e tem o gosto suave, com a sua fôrça na substância e não no sabor, causando bem-estar e fortalecendo a quem o bebe.
10. Os que começam a amar são comparados ao vinho novo. Principiando a servir a Deus, trazem os fervores deste vinho de amor muito manifestos ao sentido; não assentaram ainda a borra, que é este sentido fraco e imperfeito, e põem a fôrça do seu amor no sabor sensível. Efetivamente é pelo sabor sensível que, de ordinário, se movem e animam a obrar. E assim, não há que fiar em tal amor, enquanto não se acabam aqueles grosseiros gostos e fervores sensíveis. Sem dúvida, o fervor sensível e o calor do sentimento podem ajudar a alma, inclinando-a para o amor bem ordenado e perfeito, e servirem assim de meio para alcançá-lo, uma vez assentada a borra de imperfeição. É todavia, muito fácil também, nestes princípios, com a novidade de gostos, estragar-se o vinho do amor, se o fervor e o sabor sensível vierem novamente a faltar. Estes, que começam a amar, sempre trazem ânsias e agitações de amor sensível; convém que se lhes modere a bebida, pois se forem muito levados pela efervescência deste vinho, em suas ações, estragar-se-á neles o natural, com estas ânsias e inquietações de amor, isto é, deste vinho novo, o qual é acre e desagradável, não tendo sido ainda suavizado pela perfeita cocção em que se acabam essas ânsias de amor, como logo diremos.
11. Comparação idêntica faz o Sábio no Eclesiástico, por estas palavras: «O amigo novo é como o vinho novo; tornar-se-á velho, e o beberás com suavidade» (Ecli 19, 15). Os velhos amigos, já exercitados e provados no serviço do Esposo, são como o vinho velho, que já tem assentada a borra, e não produz mais aquelas efervescências sensíveis, nem aquelas impetuosidades e entusiasmos fogosos no exterior. Gozam da suavidade do vinho do amor já bem fermentado na substância, e não mais se detêm naquele sabor sensível, como é o do amor dos que começam; saboreiam, no íntimo da alma, este vinho de amor em sua substância e suavidade espiritual, que se manifesta em obras verdadeiras. Não querem mais apegar-se aos gostos e fervores sensíveis, e nem mesmo os desejam para não terem agitações e tristezas. Na verdade, quem larga rédeas ao apetite para qualquer gosto sensível necessariamente há de ter penas e desgostos no sentido, e também no espírito. Estes amigos velhos, carecendo daquela suavidade espiritual cuja raiz está no sentido, já não têm essas penas e agitações no sentido e no espírito, e assim é maravilha se faltarem a Deus; estão acima do que os poderia levar a isso, isto é, acima da sensualidade. Bebem o vinho do amor não somente assentado e limpo de borra, mais ainda temperado, conforme diz o verso, com as especiarias das virtudes perfeitas que não o deixam toldar como o novo. Por isto, o amigo velho é de grande estimação diante de Deus, e a ele se referem as palavras do Eclesiástico: «Não deixes o amigo velho; porque o novo não será semelhante a ele» (Ecli 9, 14). Com este vinho, pois, de amor já provado e temperado na alma é que realiza o Amado a embriaguez divina, da qual falamos, em cuja fôrça dirige a alma a Deus as suaves e saborosas emissões. O sentido, portanto, dos três versos é o seguinte: Ao toque da centelha com que despertas minha alma, e o temperado vinho com que amorosamente a inebrias, ela te envia as emissões de bálsamo divino, as quais são os movimentos e atos de amor que nela provocas.