Os anjos outrora eram mais ambíguos e ambivalentes, e tradicionalmente seus papéis nem sempre foram confortadores ou protetores em relação a nós. Mas nos servem por muitos motivos, sobretudo porque, como nós, sofrem (e representam) um problema de atraso: não são seres originais. Mal conseguem entrar na Bíblia hebraica; quase nunca pelo nome, e já observei que frequentemente são substitutos criados pelos redatores para aparecimentos ousadamente humanos do próprio Deus, Javé, na mais antiga versão do texto bíblico.
A Bíblia pré-exílio é em grande parte o Livro do Rei Davi, que sutilmente domina o texto Javístico inicial, onde no entanto ele jamais é mencionado, pois o texto abrange a história desde a Criação até a entrada em Canaã. A corte de Davi era essencialmente uma sociedade militar, com o rei-herói presidindo seus homens poderosos e um ou dois profetas admonitórios. Na era seguinte, de Salomão, uma corte altamente culta cercava o monarca, que administrava uma sociedade comercial, urbanizada e relativamente em paz, mas ainda localizando seu ideal no carismático Davi. Qualquer que tenha sido o seu poder de fato, Salomão não parece ter adotado toda a panóplia de despotismo médio-oriental antigo, com todas as suas burocracias hierárquicas. Mas na Babilônia os judeus viram o que devia ser uma imensa e complicada corte real, cuja estrutura refletia a suposta hierarquia do céu. Deus, após o exílio babilônico, reina sobre um cosmo de ordens angélicas, e não é mais o solitário deus-guerreiro, Javé, que empregava um punhado de Elohim como seus mensageiros e agentes. Da Babilônia vieram não só nomes angélicos, mas anjos burocratas, príncipes e funcionários.
Formaram-se lendas judaicas sobre a ideia de que os anjos foram feitos no segundo dia da criação, e não no primeiro. Implícita nessas lendas está uma polêmica contra os hereges gnósticos judeus, que desejavam atribuir a criação mais aos anjos que a Deus, insinuando assim uma falha nas origens. O que parece claro é que não pode haver uma história definitiva ou exemplar dos anjos. Vagos no texto bíblico, eles surgem mais cruamente nos dias pós-bíblicos e rondam a época de agruras que foi a matriz do cristianismo. A literatura apocalíptica de mais ou menos 200 A.E.C, a 200 E.C. é o verdadeiro domínio dos anjos, e está ligada a Enoque. (Harold Bloom, “Presságios do Milênio” [HBOM])