Agostinho de Hipona — SOBRE O PRIMEIRO DIA DA SANTÍSSIMA PÁSCOA
3. Mas a todos os que O receberam … (Jo 1,12). É evidente que neste número estavam os Apóstolos, os quais O receberam; neste número estavam aqueles que à frente do jumento em que ia montado levavam ramos, os que iam diante e os que iam de trás e atapetavam com seus mantos o caminho e bradavam com grande voz: «Hossana, oh! Filho de David, bendito O que vem em nome do Senhor!» (Mt 21, 9). Disseram então para Ele os fariseus: Manda calar estes garotos, para Te não aclamarem assim. E Ele: — Se estes se calarem, gritarão as pedras (Lc 19, 40). Tinha os olhos em nós quando dizia: se estes se calarem, gritarão as pedras.
Que pedras são estas, senão os que adoram pedras? Se os meninos judeus se calarem, hão de clamar grandes e pequenos entre os gentios. Que pedras são estas senão aqueles de que fala João, o que veio para dar testemunho da luz? Ao ver ele os judeus ensoberbecidos da sua descendência de Abraão, invectiva-os chamando-lhes «Raça de víboras!» (Lc 3, 7). Eles blasonavam de filhos de Abraão, ele apodava-os de raça de víboras. Tão atrevido que insultasse Abraão? Nunca. Dava-lhes o nome da vida que faziam, pois se fossem filhos de Abraão imitariam as virtudes de Abraão.
É isto exatamente o que Ele próprio lhes responde quando eles replicam: Nós somos livres, nunca fomos escravos de ninguém: o nosso pai é Abraão. Então Ele: «Se vós fósseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão. Vós quereis tirar-Me a vida, porque vos digo a verdade; tal coisa Abraão não a fez» (Jo 8, 33-40). Dele é que sois gerados, mas sois degenerados.
E que é que diz João? Raça de víboras, quem é que vos ensinou a fugir da ira que aí vem? Isto porque se vinham baptizar com o batismo de João para penitência. «Quem é que vos ensinou a fugir da ira que aí vem? Fazei, pois, dignos frutos de penitência e não digais em vossos corações: Nosso pai é Abraão. Tem Deus poder para destas pedras suscitar filhos de Abraão» (Lc 3, 7-8). Deus tem poder para destas pedras…, destas pedras que via em espírito; para eles falava, mas ao longe para nós é que olhava. Deus tem poder para destas pedras fazer filhos de Abraão, destas pedras de que foi dito: Se estes se calarem, gritarão as pedras.
Acabastes de ouvir e clamastes1. Cumpriu-se a profecia: «clamarão as pedras». Efetivamente nós vimos dos gentios. Em nossos pais adoramos pedras, por isso nos chamaram cães2. Não estais esquecidos do que aquela mulher que bradava atrás do Senhor ouviu por ser cananeia, adoradora de ídolos e escrava de demônios. Que é que disse Jesus? «Não é bom tomar o pão dos filhos e atirá-lo a cães» (Mt 15, 26). Nunca reparastes como os cães lambem as pedras untadas (de libações)?3 Tais são todos os adoradores de ídolos. Mas veio para vós a graça. «A todos aqueles que O receberam, deu-Lhes o poder de se fazerem filhos de Deus» (Jo 1,12). Tendes diante de vós homens recém-nascidos4. Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. A quem é que o deu? Aos que acreditaram no seu nome.
Interrupção do auditório que deve ter lançado uma exclamação: Deo gratias! Deo laudes! (Graças a Deus! Louvores a Deus!). Os fiéis de Hipona estavam longe de ser passivos. O pregador menciona muitas vezes as suas reações. «… E qual é esta recompensa? A vida eterna. Mal ouvistes esta palavra, gritastes de alegria…» (In Jo. Ep. 3, 11). Quando a manifestação mira só a eloquência, o pregador agradece por urbanidade, mas repreende os ouvintes: «Ouvistes e louvastes, Deo gratias. Recebestes a semente e produzistes palavras. Os vossos louvores antes me são gravosos e constituem para mim um perigo. Tolero-os, mas inquietam-me. Aliás, irmãos, os vossos louvores são as folhas da árvore; espero os frutos» (tratava-se de uma colecta para os pobres. S 61, 13). Cf. ainda S 311, 4. Mas a interrupção manifesta muita vez real consonância entre o coração do pastor e os fiéis: «Durante a leitura do Evangelho, quando Jesus disse «Desce, Zaqueu, que tenho de ficar hoje em tua casa», ouvi um murmúrio de alegria (gemitus gratulationis vestrae), como se todos vós estivésseis em casa de Zaqueu e vós recebêsseis a Cristo.» (S 25, 8). Outras vezes a intervenção dos fiéis revela que eles sabem as Escrituras, como nota o taquígrafo: «… Enfim, são do Senhor as saídas da morte. Neste salmo é que está escrito (aqui aclamações dos que sabem o salmo): Pertencem ao Senhor as saídas da morte» (S 19, 4). M. Pontet (L’exégèse de Saint Augustin prédicateur, Paris, 1944) reuniu outros textos (pp. 43-44) sobre o mesmo assunto. ↩
«Eu venerava outrora, que cegueira!, estátuas mal saídas da oficina, deuses fabricados sobre a bigorna a golpes de martelo e, quando as encontrava, ínfulas bordadas penduradas das árvores centenárias: inclinava-me, como se nela residisse alguma força, ante a pedra luzidia, repugnante do azeite da unção, falava-lhe e pedia graças a esse calhau perfeitamente insensível» (Arnóbio, Adversus gentes I, 39). ↩
Os batizados da noite precedente. Efetivamente acabam de nascer «de Deus e da Igreja»; durante oito dias serão chamados os recém-nascidos, infantes. ↩