Agostinho Páscoa Ver Crer

Agostinho de Hipona — QUINTA-FEIRA DE PÁSCOA
Tradução do latim do Padre António Fazenda

2. Ouvistes que entrou no sepulcro um discípulo d’Ele «e viu as mortalhas no chão e creu, porque ainda não sabia as Escrituras que diziam que Ele tinha que ressurgir dos mortos» (Jo 20, 8-9). Eis aí o que ouvistes e vos foi lido: Viu e creu, pois ainda não sabia as Escrituras. Portanto, o que se devia ter dito é que viu e não creu, porque ainda não sabia as Escrituras. Que quer dizer então: viu as mortalhas no chão e acreditou? Acreditou em quê? O que a mulher tinha dito: «Levaram o meu Senhor do sepulcro» (7o 20, 2). Se na verdade ouvistes, antes porque ouvistes, o que a mulher tinha dito era isto: Levaram o meu Senhor do monumento e não sei onde O puseram. Quando tal ouviram, deitaram a correr. Entrou no sepulcro, viu as mortalhas e creu o que a mulher tinha dito: que tinham roubado Cristo do monumento. Qual foi a razão por que acreditou que tinham levado e roubado Cristo do sepulcro? Qual foi a razão? É que ainda não sabia as Escrituras onde se dizia que Cristo tinha que ressurgir dos mortos. Entrara, não O achara. Devia crer que Ele tinha ressuscitado e não tinha sido roubado.

3. Que quer dizer isto? Costumamos todos os anos falar-vos desta matéria. Mas, como a leitura se faz cada ano, é necessário que cada ano vos explique porque é que Cristo Senhor disse à mulher que acabava de reconhecê-Lo … Primeiro tinha-lhe perguntado: Quem procuras? Porque choras? (Jo 20, 15). Ela, porém, julgava que Ele era o jardineiro. E se bem pensarmos, se nós somos cultura d’Ele, o jardineiro é Cristo. Não é Ele o jardineiro que «semeou o grão de mostarda», semente pequeníssima mas ardente? E cresceu e subiu e fez-se árvore tamanha que até as aves do céu podiam descansar nos seus ramos. Se tivésseis, diz Ele, fé como um grão de mostarda (Mt 17, 29). Parece insignificante o grão de mostarda, nada mais desprezível à vista, mas nada mais vigoroso. E que significa isto senão o intensíssimo ardor e a energia secreta da fé na Igreja?

Ora, pois, julgou que Ele era o jardineiro e disse-Lhe: «Senhor -fala-Lhe com delicadeza porque Lhe ia pedir um favor, por isso é que disse Senhor — se O levaste Tu, mostra-me onde O puseste e eu O levarei» (Jo 20, 15). Como se dissesse: Para mim é necessário, para ti não. Oh! mulher que tens por necessário para ti a Cristo morto, reconhece-O vivo! Tu busca-Lo morto — viu o Senhor que O buscavam por morto! Mas o que é certo é que nada nos aproveitaria ter Ele morrido, se não tivesse ressurgido dos mortos (I Cor 15, 14). Procuravam-nO morto, mostra-Se vivo. Como vivo? Chamava-a pelo seu próprio nome: Maria! E logo ela, ao ouvir o seu nome: Rabboni. O jardineiro podia dizer: Quem procuras? Porque choras? Maria, não o podia dizer senão Cristo. Chamava-a pelo seu próprio nome Aquele que a escolhera para o reino dos céus. Pronunciou este nome que Ele já tinha escrito no seu livro: Maria. E ela: Rabboni, que significa mestre. Já reconhecera Aquele de quem recebia a luz para O reconhecer, já via Cristo n’O que primeiro julgara jardineiro. E o Senhor: «Não Me toques, porque ainda não subi para meu Pai» (Jo 20, 17).

4. Que quer dizer isto: Não Me toques, porque ainda não subi para meu Pai? Se não O podia tocar quando estava de pé na terra, poderia tocá-Lo sentado no céu. Como se dissesse: «Agora não Me toques; quando tiver subido ao Pai então Me tocarás»? Recorde a vossa caridade a leitura de ontem, quando o Senhor apareceu aos discípulos e eles julgaram que viam um espírito. Ora Ele para os livrar deste erro prestou-Se a ser tocado. Que é que lhes disse? Foi lido ontem e foi o assunto do sermão: «Porque estais perturbados e porque sobem pensamentos ao vosso coração? Vede as minhas mãos e os meus pés, apalpai e vede» (Lc 24, 37-39). Já porventura tinha subido ao Pai, quando dizia: apalpai e vede, prestando-Se a ser tocado pelos discípulos, não só tocado, mas apalpado, para eles terem a certeza da verdadeira carne de um verdadeiro corpo, para lhes oferecer até às suas mãos de homens a solidez da verdade? Oferece-Se, pois, a ser apalpado pelas mãos dos discípulos e diz à mulher: Não Me toques, porque ainda não subi para meu Pai. Que significa este procedimento? Que os homens não O puderam tocar senão na terra e que as mulheres O haviam de tocar no céu: Ainda não subi para meu Pai?

Ora que significa tocar senão crer? Com a fé é que tocamos a Cristo, e é melhor não O tocar com a mão e tocá-lO com a fé, do que apalpá-lO com a mão e com a fé não O tocar. Não foi grande coisa tocar a Cristo. Tocaram-Lhe os judeus quando O prenderam, tocaram-Lhe quando O ataram, tocaram-Lhe quando O suspenderam, tocaram-Lhe e, tocando-Lhe mal, o que tocaram perderam-nO. Se pensares que Cristo é somente homem, tocaste-0 na terra. Se creres que Cristo Senhor é igual ao Pai, então tocaste-O quando subiu ao Pai. Portanto, para nós sobe quando O tivermos entendido. Naquele tempo de então subiu uma só vez, mas agora cada dia sobe.

E para quantos ainda não subiu! Para quantos jaz na terra! Quantos não dizem: Não foi homem1. Quantos não dizem: Foi um grande homem! Quantos não dizem: Foi um profeta. Quantos cristãos não houve que diziam como Fotino: Foi homem, nada mais, mas superou todos os homens piedosos e santos pela excelência da sua sabedoria e da sua justiça; não foi Deus. Oh! Fotino, tocaste na terra, andaste com pressa a tocá-lO, precipitaste o teu juízo, mas não chegaste à verdade do que é igual ao Pai, porque erraste no caminho2.


  1. A lembrança das heresias docetista e maniqueia (non fuit homo, não foi homem) pode parecer despropositada nesta apóstrofe a Fotino de Sírmio. Mas a pregação de Santo Agostinho costuma opor Maniqueus e Fotinianos: Qui negat Deum Christum Photinianus est; qui negat hominem Christum, Manicheus est (quem nega que Cristo é Deus, é fotiniano; quem nega que Cristo é homem, é maniqueu; S 92, 3); cf. in S 37, 17, no apólogo do pálio de tecido de dupla face (Christus Deus e Christus homo); do mesmo modo no panorama das heresias (Sabelianos, Arianos, Fotinianos, Maniqueus, Apolinaristas) delineado no In Jo. Eu. 47, 9, e no Liber de dono perseverantiae, 67. Pelo contrário no S 244, 4, os discípulos de Fotino sucedem aos Arianos e no Guelf. 11, Arianos e Sabelianos (que tomam aqui o lugar do seu descendente Fotino) são as Caríbdes e Cila da fé católica. O Liber de haeresibus consagrará a Fotino uma rubrica insignificante (45). As Confissões (7, 19, 1 e 25) já nos tinham informado que o catecúmeno de Milão fora antes fotiniano sem o saber. 

  2. O sermão 92, 3, explica mais longamente a imagem patria-via. Patria: a transcendência do Unigênito; via: a presença de Jesus Deus e homem (Verbum caro factum est).