Diziam: “Verdade! Verdade!” — e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és verdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas OBRAS de tuas mãos, porém, OBRAS tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas OBRAS espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI
Mas tu, meu amor, em quem desfaleço para me tornar forte, nem és estes corpos que vemos, mesmo no céu; nem os outros que não vemos, porque és o Criador e os ocultaste, e não os consideras como as OBRAS primas de tua criação. Confissões III, VI
“Deixe-o — disse — e unicamente ore por ele ao Senhor! Ele mesmo, lendo os livros dos hereges, descobrirá o erro e reconhecerá sua grande impiedade”. — Ao mesmo tempo contou-lhe que, quando criança, sua mãe, seduzida pelo erro, entregara-o aos maniqueus, chegando não só a ler, mas a copiar quase todas as suas OBRAS; e que ele mesmo, sem necessidade de que ninguém o contestasse ou convencesse, chegara a perceber a falácia daquela doutrina, abandonando-a enfim. Confissões III, XII
Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior — Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” — e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas OBRAS, e não desprezas ao coração contrito e humilhado? Confissões IV, III
Dali, como o esposo que sai do tálamo, deu saltos como um gigante, para correr seu caminho. E não se deteve; correu clamando com suas palavras, com suas OBRAS, com sua própria morte, com sua vida, com sua descida aos ínferos e com sua ascensão, clamando para que voltássemos a ele. Se ele se afastou de nossa vista, foi para que entremos em nosso coração, e ali o encontremos; se partiu, ainda está conosco. Não quis ficar por muito tempo entre nós, mas não nos abandonou. Retirou-se de onde nunca se afastou, pois o mundo foi criado por ele, e no mundo estava, e ao mundo veio para salvar os pecadores. E a ele se confessa minha alma, a ele que a cura e contra quem pecou. Confissões IV, XII
Mas não atinava com a chave de tuas artes em tão grandes OBRAS, ó Deus onipotente, único criador de maravilhas. Vagava minha alma pelas formas corpóreas, e definia o belo como o que agrada por si mesmo, e o conveniente como o que agrada por sua acomodação a outra coisa, e apoiava essa distinção com exemplos tomados dos corpos. Confissões IV, XV
Mas, parece-me, meu Senhor e meu Deus — e assim o crê meu coração em tua presença — que minha mãe não teria abdicado tão facilmente desse costume — que todavia era necessário cortar — se outro a quem não amasse tanto como a Ambrosio o tivesse proibido. De fato, ela o estimava muito por ter-me salvado, e ele a tinha em grande estima pela religiosidade e solicitude com que frequentava a igreja, na prática das boas OBRAS. Por isso, muitas vezes quando me encontrava com ele, irrompia em louvores à minha mãe, e me felicitava por ser seu filho. Ignorava o filho que ela tinha em mim, filho que duvidava de tudo, e julgava impossível achar o caminho da vida. Confissões VI, II
Não têm juízo sadio, nos que se desagradam com alguma parte de tua criação, como acontecia comigo, quando me desagradavam tantas de tuas OBRAS. Mas, como minha alma não se atrevia a desgostar do meu Deus, não queria considerar como obra tua o que lhe desagradava. Confissões VII, XIV
Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não era estável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastado de ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a terra a gemer. Meu peso eram os hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamente duvidava da existência de um ser a quem eu devia me unir, embora não estivesse apto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e a morada terrena oprime o espírito carregado de cuidados. Estava certíssimo de que tuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a criação do universo, por meio de tuas OBRAS; bem como teu poder eterno e tua divindade. Confissões VII, XVII
Foi então que tuas perfeições invisíveis se manifestaram à minha inteligência por meio de tuas OBRAS. Mas não pude fixar nelas meu olhar; minha fraqueza se recobrou, e voltei a meus hábitos, não levando comigo senão uma lembrança amorosa e, por assim dizer, o desejo do perfume do alimento saboroso que eu ainda não podia comer. Confissões VII, XVII
Alípio porém pensava que os católicos, crendo em um Deus revestido de carne, entendiam quem eu em Cristo, além de Deus e da carne, não havia alma humana; e não julgava que lhe atribuíssem inteligência humana. E como estava bem persuadido de que os atos atribuídos tradicionalmente a Cristo não podiam ser senão OBRAS de um criatura cheia de vida e de inteligência, Alípio se aproximava com certa relutância da fé cristã. Mas depois, ao saber que este erro era próprios dos hereges apolinaristas, aderiu alegremente à fé católica. Confissões VII, XIX
Depois de ter lido aqueles livros dos platônicos, induzido por eles a buscar a verdade incorpórea, começaram a se tornarem patentes, por meio de tuas OBRAS, tuas perfeições visíveis. Confissões VII, XX
Esses pensamentos penetravam-me as entranhas de modo maravilhoso, quando eu lia o menor de teus apóstolos. Considerava tuas OBRAS e enchia-me de assombro. Confissões VII, XXI
Fui ter pois com Simpliciano, pai espiritual do então bispo Ambrósio, que o amava verdadeiramente como pai. Contei-lhe os labirintos do meu erro. E quando lhe disse que havia lido alguns livros dos platônicos, traduzidos para o latim por Vitorino, outrora retórico em Roma — e do qual ouvira dizer que morrera cristão — ele me felicitou por não ter caído nas OBRAS de outros filósofos, falazes e enganosas, segundo os elementos deste mundo, mas apenas estes, que insinuam por mil modos a Deus e a seu Verbo. Confissões VIII, II
Por que isto, Senhor, meu Deus, quando tu mesmo és tua própria alegria eterna, e as criaturas à tua volta em ti se alegram? Por que esta parte do universo sofre as alternâncias de progressos e quedas, de uniões e separações? Será este o modo de ser que lhe concedeste quando, do mais alto dos céus até às profundezas da terra, desde o princípio dos tempos até o fim dos séculos, desde o anjo até o pequenino verme, e desde o primeiro movimento até o último, dispuseste todos os gêneros de bens e todas as tuas OBRAS justas, cada uma em seu lugar e tempo? Confissões VIII, III
Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas OBRAS, ou, se não em minhas OBRAS, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha vontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza de minha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha alma. Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tu querias. Confissões IX, I
Mas quando encontrei tempo suficiente para dar testemunho de todos os grandes benefícios que me concedeste nessa época da vida, uma vez que tenho pressa de chegar a outros assuntos mais importantes? Volta-me — e me é doce confessá-lo, Senhor — a lembrança dos estímulos internos com que me domaste; o modo como me aplanaste a alma derrubando as colinas e montanhas de meus pensamentos; como endireitaste meus caminhos tortuosos e suavizasse minhas asperezas; como também submeteste Alípio — o irmão de meu coração — ao nome de teu Filho único, Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso, nome que ele mal suportava em minhas OBRAS, porque preferia o cheiro dos soberbos cedros das escolas, já abatidos pelo Senhor, ao odor das salutares ervas de tua Igreja, antídoto contra o veneno das serpentes. Confissões IX, IV
Havia sido mulher de um só homem, cumprira sua dívida de gratidão com os pais, governara sua casa piedosamente e dava testemunho com suas boas OBRAS. Educara os filhos, dando-os à luz tantas vezes quantas os via apartarem-se de ti. Confissões IX, IX
E subimos ainda mais em espírito, meditando, celebrando e admirando tuas OBRAS, e chegamos até o íntimo de nossas almas. E fomos além delas, para alcançar a região da abundância inesgotável, onde apascentas eternamente a Israel com o alimento da verdade, lá onde a vida é a própria Sabedoria, por quem foram criadas todas as coisas, as que já existem e as vindouras, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe agora como antes existiu e como sempre existirá. Antes, nela não há nem passado, nem futuro: ela apenas é, porque é eterna; mas ter sido ou haver de ser não é próprio do ser eterno. Confissões IX, X
E enquanto assim falávamos dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos a tocá-la momentaneamente com supremo ímpeto de nosso coração; e, suspirando, deixando ali atadas as primícias de nosso espírito, e voltamos ao ruído vazio de nossos lábios, onde nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante a teu Verbo, Senhor nosso, que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas as coisas! E dizíamos: Suponhamos que se calasse o tumulto da carne, as imagens da terra, da água, do ar e até dos céus; e que a própria alma se calasse, e se elevasse sobre si mesma não pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelações imaginarias e, por fim, se calasse por completo toda língua, todo sinal, e tudo o que é fugaz — uma vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemos a nós mesmas; fez-nos o que permanece eternamente — se, dito isto, todas se calassem, atentas a seu Criador; e se só ele falasse, não por suas OBRAS, mas por si mesmo, de modo que ouvíssemos sua palavra, não por uma língua material, nem pela voz de um anjo, nem pelo ruído do face de Deus; e pela palavra terra, uma matéria informe. — Que quis dizer então? — O que nós afirmamos — respondem — isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. — E que é que afirmais? — Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as OBRAS visíveis de Deus”. Confissões XII, XVII
Quando leem ou ouvem as palavras de Moisés, veem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Veem que tua vontade, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, não tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as OBRAS da criação são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas. Confissões XII, XXVIII
E a terra o produz; ao teu comando, ó Senhor que és seu Deus, nossa alma germina OBRAS de misericórdia, de acordo com sua condição: ela ama o próximo e vai em auxílio de suas necessidades materiais. Carrega em si a semente da compaixão, por uma semelhança de natureza, porque é o sentimento de nossa fraqueza que nos leva a compadecer as misérias dos que são necessitados, a socorrê-los, como desejaríamos que nos socorressem se tivéssemos as mesmas necessidades. E não se trata só de dar apoio fácil, como ervas nascidas de sementes, mas de proteção enérgica, vigorosa como a árvore que carrega frutos, símbolos das OBRAS que arrebatam à mão do poderoso a vítima da injustiça, dando-lhe um abrigo à sombra protetora de um julgamento justo. Confissões XIII, XVII
Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da terra a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas OBRAS, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no firmamento de tua Escritura. Confissões XIII, XVIII
Que o mar também conceba e dê à luz tuas OBRAS; que as águas produzam répteis dotados de almas vivas. De fato, separando o precioso do vil, vos tornastes a boca de Deus, pela qual ele diz: “Produzam as águas…” não a alma viva, filha da terra, mas répteis dotados de almas vivas, e pássaros que voam sobre a terra. Assim como esses répteis, teus sacramentos, ó meu Deus, deslizaram, graças às OBRAS de teus santos, por entre as ondas das tentações do século para regenerarem os povos com teu nome, em teu batismo. Confissões XIII, XX
Estaria eu mentindo? Ou confundindo a questão, não distinguindo as claras noções das coisas do firmamento das OBRAS corpóreas que se realizam no mar agitado e sob o firmamento? Confissões XIII, XX
Todas tuas OBRAS são belas, mas és indizivelmente mais belo tu, que criaste tudo o que existe. Se Adão não se tivesse separado de ti, em sua queda, de seu seio não teria saído o oceano amargo do gênero humano, com sua profunda curiosidade, seu orgulho cheio de tempestades, suas ondas instáveis. E os dispensadores de tuas palavras não teriam a necessidade de representar, no meio de tantas águas, por meio de sinais físicos e sensíveis, teus atos e palavras místicas. Foi nesse sentido que entendi esses répteis e essas aves. Mas até os homens iniciados nesses sinais e deles imbuídos, não avançariam no conhecimento desses mistérios, aos quais estão sujeitos, se sua alma não se elevasse á vida do espírito, e, após a palavra inicial, não aspirasse à perfeição. Confissões XIII, XX
A terra que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie de aves que as águas produziram por ordem de teu Verbo. Envia-lhe, pois, teu Verbo, por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas OBRAS, mas quem age por seu intermédio, para que produzam uma alma viva, és tu. A terra a germina porque é a causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa da produção dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do céu. A terra já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixes pescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste na presença dos crentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar a terra árida. Confissões XIII, XXI
Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produza uma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teus evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. — Eis o sentido da expressão “segundo sua espécie”, porque o homem imita a quem ama. “Sede como eu” — diz o Apostolo, – porque sou como vós. — Assim haverá na alma viva apenas feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazei vossas OBRAS com mansidão, e sereis amados por todos” — Também os animais domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons. Confissões XIII, XXI
Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste — pois somos obra tua, e criados para OBRAS boas, tanto os que governam como os que obedecem segundo o Espírito tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humana homem e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre. Os espirituais, portanto, tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles não julgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabe fazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo em suas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certeza de que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. O homem, pois, embora já espiritual e renovado pelo conhecimento, conforme a imagem de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizar sobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus olhos, meu Senhor, os distinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que os reconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, e os chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento. Confissões XIII, XXIII
O homem espiritual julga também aprovando o que acha correto e reprovando o que é vicioso nas OBRAS e nos costumes dos fiéis. Julga das suas esmolas, comparáveis aos frutos da terra; ele julga a alma viva pelas paixões domadas pela castidade, os jejuns, e pelos pensamentos piedosos, na medida em que essas coisas se manifestam aos sentidos do corpo. Em resumo, é juiz de tudo o que pode se corrigir. Confissões XIII, XXIII
E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a terra” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas OBRAS de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV
Tu nos deste para alimento todas as ervas que produzem semente e que cobrem a terra, e todas as árvore que contém em si, em germe, seus frutos. E não foi somente a nós que deste esse alimento, mas também às aves do céu, aos animais da terra e aos répteis, mas não aos peixes e aos grandes cetáceos. Dizíamos que esses frutos da terra significam e representam alegoricamente as OBRAS de misericórdia, que a terra fecunda produz para as necessidades desta vida. Era semelhante a uma terra assim o piedoso Onesíforo, cuja casa recebeu a graça de tua misericórdia, porque muitas vezes assistira a teu Paulo, sem se envergonhar por suas cadeias. Confissões XIII, XXV
Eles, de fato, tinham estado realmente aborrecidos e, tornados áridos, não produziam mais o fruto das boas OBRAS; e Paulo se alegra por eles, porque suas simpatias tornaram a florescer, e não por o terem socorrido na sua indigência. Porque ele diz em seguida: “Não é por causa das privações que sofro que falo assim: aprendi a me contentar com o que tenho. Sei acomodar-me às privações, e sei viver na abundância. Em tudo e por tudo habituei-me à saciedade e à fome, à abundância e à penúria. Tudo posso naquele que me fortalece”. Confissões XIII, XXVI
Ouçamos o que segue: “Contudo, fizestes bem ao partilhar de minhas tribulações” — Esta é a fonte da alegria, isto é o que o nutre, as boas OBRAS, e não o conforto que aliviou sua miséria. Ele diz: “Na tribulação dilatastes meu coração” — pois ele aprendeu a viver na abundância e sofrer as privações, em ti, que o confortas. — “Bem sabeis, filipenses — diz ele — que nos primórdios de minha pregação do Evangelho, quando deixei a Macedônia, nenhuma Igreja me assistiu com seus bens quanto ao dar e receber, com exceção de vós, que, várias vezes me enviaste, para Tessalônica, com que suprir às minhas necessidades”. — Alegra-se agora por voltarem à prática de boas ações, felicitando-se por terem eles reflorido como campo fértil e verdejante. Confissões XIII, XXVI
Viste, meu Deus, que tudo o que criaste te pareceu excelente. Também nós vemos tua criação, e ela nos parece excelente. Para cada espécie de obra criada, disseste: “Faça-se” e quando elas se fizeram, viste que eram boas. Sete vezes está escrito — eu as contei — que viste a excelência de tua obra; e na oitava vez contemplaste toda a criação, e disseste que, no seu conjunto, era não apenas boa, mas muito boa. Tomadas separadamente, tuas OBRAS eram boas; consideradas em seu conjunto, elas eram boas e até excelentes. O mesmo julgamento se pode fazer da beleza dos corpos. Um corpo, formado de membros todos belos, é muito mais bonito que cada um desses membros cuja harmoniosa organização forma o conjunto, embora, considerados à parte, também eles tenham sua beleza própria. Confissões XIII, XXVIII
Procurei ver com atenção se forma sete ou oito as vezes que constataste a bondade de tuas OBRAS quando elas te agradaram. Mas não encontrei uma sequência temporal não tua visão, de onde pudesse deduzir que foi esse o número de vezes que viste tuas criaturas. Então disse: “Senhor, não será verdadeira tua Escritura, inspirada por ti, que és a própria verdade? Por que então me dizes que tua visão das coisas não está sujeita ao tempo, enquanto tua Escritura me diz que dia por dia viste a bondade de tuas OBRAS? E calculei quantas vezes o fizeste.” Confissões XIII, XXIX
Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura de tua verdade. Compreendi que há uns aos quais tuas OBRAS desagradam. Eles sustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como a estrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo, mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do mundo, depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, e não mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outros seres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à terra por meio de raízes; que foi um espírito hostil, uma outra natureza, não criada por ti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do mundo, que as gerou e organizou. Esses insensatos falam assim porque não veem tuas OBRAS através de teu Espírito, nem te reconhecem neles. Confissões XIII, XXX
O oposto sucede aos que veem tuas OBRAS através de teu Espírito, pois és tu é quem as vê neles. Portanto, quando veem que elas são boas, tu também vês essa bondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o que nos agrada através de teu Espírito é em nós que te agrada. Com efeito, quem dentre os homens sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem que nele habita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser o Espírito de Deus. “Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e espírito deste mundo, mas o Espírito de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm de Deus”. Confissões XIII, XXXI
Que tuas OBRAS te louvem para que te amemos! Que nós te amemos, para que tuas OBRAS te louvem! Elas têm seu princípio e fim no tempo, seu nascimento e morte, seu progresso e decadência, sua beleza e sua imperfeição. Elas têm, portanto, sucessivamente sua manhã e sua noite, umas oculta; outras, manifestamente. Confissões XIII, XXXIII
Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas OBRAS, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em OBRAS de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu. Confissões XIII, XXXIV
Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a fé entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoados teus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade humana para imitar, à tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao homem, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teus ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmos fiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; OBRAS valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. vemos todas essas coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas. Confissões XIII, XXXIV
O sétimo dia, porém, não tem crepúsculo; não entardece porque o santificaste para que se prolongue eternamente. E o repouso de teu sétimo dia, depois de ter criado tantas e tão boas OBRAS, embora sem te causar fadiga, a palavra de tua Escritura nos anuncia que também nós, depois de nossos trabalhos, que são bons porque assim nos o concedeste, encontraremos o repouso em ti, no sábado da vida eterna. Confissões XIII, XXXVI
Então também repousarás em nós, como hoje opera em nós; e o repouso de que gozaremos será teu, como as OBRAS que fazemos são tuas. Mas tu, Senhor, sempre estás ativo e sempre estás em repouso. Tu não vês o tempo, não ages no tempo nem repousas no tempo; todavia, concede-nos que vejamos no tempo,fazes o próprio tempo e o repouso além do tempo. Confissões XIII, XXXVII
Vemos, portanto, as tuas criaturas porque elas existem. Mas elas existem porque tu as vês. Olhando à nossa volta, vemos que elas existem; em nosso íntimo, vemos que são boas. Mas tu já as viste feitas quando e onde viste que deviam ser feitas. Agora somos inclinados a praticar o bem, depois que nosso coração concebeu essa ideia em teu Espírito. Outrora estávamos inclinados ao mal, desertando de ti. Tu, porém, ó Deus, único bem, nunca cessaste de nos fazer o bem. Por tua graça, algumas de nossas OBRAS são boas, mas não são eternas. Esperamos, depois de realizá-las, repousar em tua grande santificação. Mas tu, que não precisas de nenhum outro bem, estás sempre em repouso, porque és teu próprio repouso. Confissões XIII, XXXVIII