Agostinho Crucificação

Agostinho de Hipona — SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR
Traduzido do latim pelo Padre António Fazenda. Este sermão faz parte da colecção manuscrita do Homiliário de Wolfenbüttel (em latim, codex Gulferbytanus).

3. Ora os que nos atiram como insulto que adoramos um Senhor crucificado1 quanto mais sensatos imaginam ser tanto mais insanável e desesperada é a insensatez que sofrem, porque não entendem absolutamente nada do que cremos nem do que dizemos. Pois não dizemos que em Cristo morreu o que era Deus, mas o que era homem.

Na verdade, se quando morre um homem, aquilo que essencialmente o constitui homem, isto é, aquilo que o distancia dos brutos, que o faz inteligente, capaz de discernir o humano e o divino, o temporal e o eterno, o verdadeiro e o falso, isto é, a alma racional, não sofre a morte com o seu corpo, mas, ao morrer o corpo, ela se retira viva, contudo se diz morreu um homem, porque é que não se poderá também dizer morreu Deus, entendendo não que pudesse morrer aquilo que é Deus, mas aquilo que é mortal e que Deus tomara pelos mortais? Pois assim como quando morre um homem, não morre a alma que ele tem na sua carne, assim também quando Cristo morreu, não morreu a sua divindade no homem.

Mas Deus, dizem, não pôde unir-Se ao homem e com ele fazer um só Cristo. Segundo esta sentença carnal e vã e os pensamentos humanos, muito mais difícil seria crer que um espírito se pudesse unir à carne, do que Deus a uma natureza humana, e contudo nenhum homem seria homem se não se unisse um espírito de homem a um corpo humano. Quando, pois, um espírito e um corpo constituem uma associação mais difícil e estupenda que a de espírito com espírito, se o espírito do homem, não sendo corpo, e o corpo do homem, não sendo espírito, contudo um e outro se juntam para constituir um homem, quanto mais, para de um e de outro constar um só Cristo, pôde Deus, que é espírito, unir-Se com comunicação espiritual, não a um corpo sem alma mas a uma natureza humana que a tinha?

4. Gloriemo-nos, pois, também nós, na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual o mundo é para nós um crucificado e nós para ele; para não corarmos desta cruz é que a colocamos na fronte, isto é, na própria sede da vergonha2.

Já, porém, se quisermos explicar que lição de paciência e quão salutar se encontra nesta cruz, quais poderão ser as palavras capazes de tal matéria e o tempo suficiente para tais palavras? Pois qual seria o homem que, crendo em Cristo com toda a firmeza e com toda a alma, se atrevesse a ter soberba, quando Deus não de palavra mas de exemplo lhe ensina a humildade? Ora qual seja a utilidade desta lição brevemente o adverte aquela sentença da Sagrada Escritura: Antes da ruína exalta-se o coração e antes da glória é humilhado (Pr 18, 12). Diz no mesmo sentido o seguinte: Deus resiste aos soberbos, e aos humildes dá a sua graça (Tm 4, 6); e mais isto: Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (Lc 14, 11; 18, 14). Além disto, como nos adverte o Apóstolo que não nos deixemos seduzir pelo gosto das grandezas mas nos acomodemos à humildade, pense, o homem, se o pode, a que precipício de soberba se despenha se não quiser ter os sentimentos de seu Deus humilhado, e que pernicioso não é que o homem leve com impaciência o que lhe impuser o seu justo Senhor, quando Deus sofreu com paciência o que quis o seu injusto ofensor. Ámen3.


  1. Arnóbio (Contra gentes I, 36) dava a palavra a um adversário: «Não, os deuses não são vossos inimigos por adorardes um deus omnipotente, mas por pretenderdes que seja Deus um homem morto na cruz, suplício, até para os seres mais vis, infamante, e por crerdes que tal homem ainda vive e por O adorardes todos os dias.» E Lactâncio (Divin. Inst. IV, 16): «Chego agora a esta paixão que nos costumam deitar em rosto como insulto, repreendendo-nos de adorar um homem e um homem condenado pelos homens ao mais horrível dos suplícios, crucificado.» E o próprio Agostinho: «Quando te insultam por causa de Cristo, quando te chamam «adorador de um crucificado», «devoto de um condenado à morte», «discípulo de um assassinado» (En. in Ps. 68, I, 12). Ou ainda: «Insultam-nos porque acreditamos num crucificado, num homem que foi condenado e morto» (S 279, 8). 

  2. «Muito longe de corar da cruz, não ponho a cruz de Cristo em lugar oculto, trago-a na testa» (En. in Ps. 141, 3). Cf. In Jo. Eu. 36, 3; 43, 9; 53, 13. En. in Ps. 68, II, 12. A signação é o primeiro rito do catecumenado: «Quando pela primeira vez acreditastes, recebestes o sinal de Cristo na testa, no lugar de maior honra» (S 215, 5). 

  3. Um inimigo que pouco tempo cantou vitória: «Quando Cristo morreu, o diabo exultou, mas pela morte de Cristo é que o diabo foi vencido. Isto foi para ele esparrela cuja isca engoliu: … cruz do Senhor, logro do diabo» (S 263, 1).