Abba no Judaísmo

Abba no judaísmo palestinense
Excertos de Joaquim Jeremias, “A Mensagem Central do Novo Testamento

O judaísmo palestinense
Assim como o Antigo Testamento, também o judaísmo palestinense anterior a Jesus Cristo é sóbrio em falar de Deus como Pai. Assim, por exemplo, em toda a literatura de Qumran, que deve ser anterior a 68 a. C., só existe uma passagem em que se dá o nome de pai a Deus. O judaísmo rabínico serve-se mais livremente do título, mas sem excesso. Procurando-se saber que os judeus contemporâneos de Jesus entendiam quando davam a Deus o nome de Pai, precisamos frisar duas notas características. Em primeiro lugar, tendo-se a menor familiaridade com o judaísmo desta época, não acharemos estranho ver energicamente sublinhada a obrigação de obedecer ao Pai celeste. Os rabinos ensinavam que Deus estende sua paternidade unicamente àqueles que cumprem a Lei (Torah). Ele é pai dos que fazem sua vontade, dos justos. Todavia, encontra-se ainda e sempre a certeza formidável dos profetas: o amor paternal de Deus é sem limites e ultrapassa toda culpabilidade humana. Quando o rabi Jehuda (cerca de 150 a.C. ) ensinava:

Se agísseis como filhos,
seríeis chamados de filhos.
Se não agísseis como filhos,
não seríeis chamados de filhos.

o seu colega e adversário rabi Meir lhe opunha esta frase de audaz brevidade:

De uma maneira ou de outra — sois chamados de filhos1.

O amor paternal de Deus é sua primeira e última palavra, por maior que seja a culpabilidade de seus filhos.

O segundo traço que caracteriza os testemunhos judaicos desta época sobre a paternidade de Deus é o seguinte: Deus é chamado várias vezes de Pai de cada israelita em particular, e a ele se dirigem preces nas orações litúrgicas: abbinu, malkenu — “nosso Pai, nosso Rei”. Assim se pode ler numa oração que pode facilmente ser situada na época mesma de Jesus:

Nosso Pai, nosso Rei,
em vista de nossos pais
que creem em ti
e a quem ensinas as leis da vida –
tem piedade de nós e ilumina-nos.2

Isto é novidade com referência ao Antigo Testamento. Contudo, há um certo número de coisas que não devem ser negligenciadas. Primeiramente, este texto está em hebraico, língua sacra, de que não se lançava mão na vida do dia-a-dia. Leve-se também em conta o duplo título de “nosso Pai, nosso Rei”, que sublinha tanto a majestade de Deus enquanto Rei como sua paternidade, e até o mais. Para terminar, é o conjunto da comunidade que se dirige a Deus como “nosso Pai”.

Até hoje ninguém forneceu um único exemplo saído do judaísmo palestinense em que Deus seja chamado de “meu Pai” por um indivíduo3. Encontram-se alguns casos no judaísmo helenístico, mas são devidos à influência grega. Entre os escritos palestinenses, só se pode citar um texto de dois versículos muito semelhantes do c. 23 do livro de Bern Sira (começo do séc. 2 a.C.), que infelizmente só existem em grego. Aí se pode ler: “Ó Senhor, Pai e dono da minha vida. . .” (v. 1) e: “Ó Senhor, Pai e Deus da minha vida. . . ” (v. 4). Estes dois versículos são os únicos que fazem exceção à regra, e nós o acataríamos como sendo um prelúdio ao Evangelho, se não houvesse sido descoberta, há cerca de uns 30 anos, uma paráfrase hebraica deste texto. Nela não se diz: “Ó Senhor, Pai. . .”, mas: “Ó Deus de meu pai. . .”4 Temos aí evidentemente os termos do texto hebraico original, porque a expressão “Deus de meu pai”, que provém de Ex 15,2, estava muito espalhada e acha-se alhures rio Sirácida. Pode-se, portanto, dizer que não existe até agora nenhuma prova de que no judaísmo palestinense alguém se tenha dirigido a Deus, chamando-o de “meu Pai”.


NOTAS




  1. Talmud da Babilônia, Tratado Qidduschim, 36a (Baraitha). 

  2. Oração Ahabba rabba, a segunda bênção que introduzia o Shema recitado diariamente de manhã e de tarde. Provavelmente já fazia parte da liturgia do templo (Mischna, Tratado Tamid, 5.L). Textos: W. B. Heidenheim, Siddur Sephatb Emeth, Rodelheim, 1886, pp. 17a. 13s. 

  3. Existem alguns casos isolados no Sedher Eliyahu Rabba, mas é um texto medieval (séc. 10?) do sul da Itália. 

  4. J. Marcus, A Fifth MS of Ben Sira, in: Jewish Quarterly Review 21 (1930) p. 238.