Abandono de Deus

CALVÁRIOABANDONO DE DEUS (Mt XXVII, 45-46; Mc XV, 33-41; Lc XXIII, 44-49)

E, desde a hora sexta, houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona. Cerca da hora nona, bradou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Alguns dos que ali estavam, ouvindo isso, diziam: Ele chama por Elias. (Mc 15:33-34)

E, chegada a hora sexta, houve trevas sobre a terra, até a hora nona. E, à hora nona, bradou Jesus em alta voz: Eloí, Eloí, lamá, sabactani? que, traduzido, é: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Alguns dos que ali estavam, ouvindo isso, diziam: Eis que chama por Elias. (Mt 27:45-46)


Roberto Pla: Evangelho de ToméLogion 113
Durante toda hora sexta a obscuridade cai sobre a terra simbolizada pela cessação da luz dos astros, mas que em verdade é cessação de luz para todo mortal, terreno, que permanece na alma, deve durar até que o véu — o firmamento genesíaco de bronze polido — estendido no Santuário, no mais recôndito da consciência do homem, “se rasga” e permite ao eleito receber na já completa obscuridade de abaixo, a luz total de acima.

Mas nesse período de cessação da luz e justo no momento de terminar o manto temporal de trevas, isto é, justo ao começo da hora nona, contam os evangelistas Mateus e Marcos que se ouviu um grande grito de Jesus com forte voz: “Eloi, Eloi, lema sabactani?” — que quer dizer — Deus meu! Deus meu! por que me abandonastes?”.

Este clamor angustiado desde a cruz foi interpretado por muitos como indicativo do desespero de Jesus ao sentir-se abandonado pelo Pai. Verdade é que dentro da leitura de ordem manifesta a acusação, ou pelo menos a presunção de abandono de Cristo na cruz a sua sorte natural em mãos de seus verdugos não só permite pôr em dúvida a divindade de Jesus, senão que ensina um dualismo Pai-Filho em total contradição com a afirmação de unidade várias vezes explicada por Jesus quando dizia: “Eu e o Pai somos um”.

Em consequência, a exegese cristã manifesta quis explicar a exclamação de Jesus como uma queixa real de desamparo, embora momentânea, que longe de ser grito de desconfiança é, antes de tudo, uma ardente oração de afirmação messiânica e de triunfo. Isto se pode entender, sobretudo, se se atende ao texto completo do Salmo XXII cujo versículo segundo repete Jesus.

Com efeito, não é difícil descobrir entre as “sete palavras” que Jesus pronunciou na cruz, o enunciado de diferentes Salmos cujo conteúdo textual comunica uma situação paralela a qual os evangelistas descrevem. Este paralelismo é interpretado pela exegese eclesial manifesta como uma profecia precisa formulada nos salmos.
*Os salmos invocados pelas palavras de Jesus em tais circunstâncias, e qualificados, portanto, de profecias messiânicas pela exegese eclesial são os Salmos 21, 31, 69, 119, e também o Salmo XXII que agora nos ocupamos.

No Salmo XXII — se afirma — de dá a chave para entender de modo verdadeiro o sentido exato do abandono, que não é mais que passageiro, ou talvez, só aparente.

No entanto, desde a vertente oculta, que se ocupa do Cristo interior, espiritual, preexistente, a exegese respeita a opinião manifesta, pois discorre por uma via paralela muito diferente, que não se entrechoca, mas não a compartilha.

A dificuldade para a exegese manifesta se produz porque os hagiógrafos dos evangelhos canônicos não conseguiram em todos os casos oferecer uma versão com validez simultânea para as vertentes manifesta e oculta. Isto já o explicamos (Sentidos da Escritura).

Por meio do chamado abandono de Cristo na cruz se tenta descrever em expressão oculta um “passo” capital no processo de consumação do espírito do homem, pois nele, o espírito, o homem essencial, se enfrenta com o instante supremo no qual vai cruzar, através da tribulação desolada e desde a margem da obscuridade, significada pela hora sexta, à ressurreição da luz que se anuncia na hora nona, na última, na qual se haveria de rasgar, ao final, o véu do Santuário (v. Véu do Santuário Rasgou).

Daí que a primeira exclamação do que foi cativo e agora livre seja um grito forte de bem-aventurança: “Eli! Eli! Por que me abandonastes?”.
*Como se sabe o verbo grego enkatelipes é muito expressivo e está em aoristo que indica uma ação em passado forte.

O abandono ao qual tanto o salmista como os escribas evangélicos se referem, não é a breve embora intensa cruz de madeira, senão a longa e dura cruz que cada santo anjo caído na geração se vê designado a sofrer e revelar em si mesmo (v. Simbolismo da Cruz para um entendimento da individualidade humana enquanto “ponto” de manifestação de uma cruz cosmológica).