A interpretação do que é como aquilo que se mostra, e, assim, do Ser como Verdade, domina o desenvolvimento do pensamento ocidental. Se consideramos a título de exemplo a filosofia da consciência surgida no século XVII, reconhecemos sem dificuldade que a consciência não é nada mais que o ato de se mostrar captado em si mesmo, a manifestação pura, a Verdade. Por seu lado, as coisas são reduzidas por esta filosofia àquilo que se mostra à consciência, a seus fenômenos. A passagem da filosofia antiga e medieval do Ser à filosofia moderna da consciência geralmente é interpretada como uma das grandes rupturas do pensamento ocidental. Ora, tal passagem não muda nada na definição da coisa como fenômeno; ao contrário, leva-a ao absoluto. Os fenômenos da consciência são suas representações, seus objetos. A relação da consciência com seus objetos permite cingir com mais precisão a natureza desta manifestação pura que é a consciência, a natureza da verdade. Para a consciência, re-(a)presentar o que quer que seja é pô-lo diante de si. Em alemão representar se diz vor-stellen = pôr (stellen) diante de (vor). Ob-jeto designa o que é posto diante de, de modo que é o fato de ser posto diante de o que o torna manifesto. A própria consciência não é nada além desta manifestação consistente no fato de ser posto diante de. O que é posto diante de é o ob-jeto, o que é [26] verdadeiro, o que se mostra, o fenômeno. O fato de ser posto diante de é a verdade, a manifestação, a consciência pura. O fato de ser posto diante de é também o fato de ser posto aí fora, é o “aí fora” como tal. O “aí fora” como tal é o mundo. Dizemos: “a VERDADE DO MUNDO”. Mas a expressão “a VERDADE DO MUNDO” é tautológica. É o mundo, é o “aí fora” que é a manifestação, a consciência, a verdade. MHSV I
Como se vê, a consciência não designa absolutamente uma verdade de outra ordem além da VERDADE DO MUNDO. Muito pelo contrário, a emergência da filosofia moderna da consciência marca o momento em que o mundo cessa de ser compreendido de modo ingênuo como a soma das coisas, dos “entes” – e isso porque essas próprias coisas cessam de ser compreendidas tão ingenuamente como o que tão simplesmente se tem ali diante de nós, como aquilo a que teríamos acesso sem que a possibilidade de ter acesso a elas causasse problema. Ora, é precisamente este “estar ali diante de nós” que faz delas fenômenos. Mas este “estar ali diante de” não é nada mais que o “lá fora” que é o mundo como tal, sua verdade. MHSV I
A essa verdade original do mundo está submetido tudo o que é verdadeiro, todo fenômeno, qualquer que seja sua natureza, trate-se de uma realidade sensível como o azul do céu ou inteligível como a igualdade dos raios do círculo, tudo o que podemos perceber, conceber, imaginar ou nomear pela linguagem. Uma coisa só existe para nós se se mostra a nós enquanto fenômeno. E ela não se mostra a nós senão nesse “lá fora” primordial que é o mundo. Pouco importa, afinal das contas, que a VERDADE DO MUNDO seja compreendida a partir da consciência ou a partir do mundo se, num e noutro caso, o que constitui a capacidade de se mostrar, a verdade, a manifestação, é o “lá fora” como tal. MHSV I
A capacidade de se mostrar que encontra sua possibilidade no “lá fora” do mundo pertence o fato de que tudo o que é suscetível de se mostrar nela se encontre por princípio diferente dela. Reconhecemos aqui um traço essencial percebido desde o início de nossa análise: o desdobramento do conceito da verdade entre o que é verdadeiro e a própria verdade. Esse desdobramento se manifesta, como vimos, pela indiferença da luz da verdade com relação a tudo o que ela ilumina, a tudo o que é verdadeiro. É precisamente quando a verdade é compreendida como a do mundo que essa indiferença é levada à evidência: no mundo mostra-se tudo e qualquer coisa – rostos de crianças, nuvens, círculos – de tal modo, que o que se mostra não se explica nunca pelo modo de desvelamento próprio do mundo. O que se mostra na VERDADE DO MUNDO mostra-se nela como outro que ela, como abandonado por ela, descoberto nela como isto ou aquilo, mas um isto que poderia ser diferente do que é, um conteúdo contingente, abandonado a si mesmo, perdido. O que é verdadeiro na VERDADE DO MUNDO não depende em absoluto dessa verdade, não é sustentado por ela, guardado por ela, amado por ela, salvo por ela. A VERDADE DO MUNDO – isto é, o próprio mundo – não contém jamais a justificação ou a razão daquilo que ela permite mostrar-se nela e assim “ser” – na medida em que ser é mostrar-se. MHSV I
A VERDADE DO MUNDO não é somente indiferente a tudo o que ela mostra. E de modo muito mais grave que ela atinge ao que tem dela sua verdade, que não é “verdadeira” senão por se mostrar nela. E isso porque o mundo não é um meio inerte qualquer e de todo feito, preexistente às coisas e no qual estas só teriam de penetrar para se encontrar iluminadas por ele, pela luz desse “lá fora”. Nas filosofias que colocam no fundamento da verdade a consciência, esta se define como uma transcendência ativa que lança para além do ente o horizonte no qual ele se tornará visível. A colocação do ente na condição de “ob-jeto” ou de “em face de”, e, assim, de fenômeno, só é possível pela pro-dução deste horizonte transcendente de visibilidade que é o próprio mundo. O mundo consequentemente não “é”, ele não cessa de advir como um horizonte que não cessa de tomar forma, e isso sob a condição de um poder que não cessa de projetá-lo. Em Kant esse poder se chama imaginação transcendental, é a colocação em imagem de um [28] mundo que não é outra coisa senão essa colocação em imagem. E é nesta colocação em imagem, nesse lugar imaginário, que todo ente, por sua vez, se mostra a nós a título de imagem, de representação, de ob-jeto, de em face de, de fenômeno. MHSV I
Ora, não é necessário vincular essa produção de um horizonte de visibilidade como colocação em imagem de um mundo a uma consciência e a um poder determinado desta consciência denominada imaginação. Basta antes pensar nessa pro-dução do lá fora do mundo por si mesma, como um fato primeiro e absoluto. É o próprio “lá fora” que se exterioriza, de si mesmo e por si mesmo. A “VERDADE DO MUNDO” não é nada além disto: essa autoprodução do “lá fora” como horizonte de visibilidade no qual e pelo qual tudo pode tornar-se visível e, desse modo, “fenômeno” para nós. A Natureza em que pensavam os gregos sem dúvida não era diferente desta autoprodução do “lá fora” como verdade original do mundo. Quanto à consciência dos modernos, ela não foi senão um modo impróprio de formular essa mesma verdade. A consciência é, antes de tudo, compreendida como um sujeito que se refere a um objeto. Mas esse sujeito corre o risco de ser confundido com algo, com alguma substância consciente ou espiritual que teria a propriedade de se referir a objetos. Por isso importa compreender que a consciência não é nada além desse referir-se ao objeto; ela é “consciência de algo”, pura intencionalidade ultrapassando-se na direção do objeto e antes de tudo deste “lá fora” onde tudo se mostra enquanto “ob-jeto”, enquanto “em face de”, “fenômeno”. MHSV I
Aqui se torna perceptível a gravidade do golpe que a VERDADE DO MUNDO acarreta a tudo o que ela faz ver, a tudo o que ela torna verdadeiro. Na medida em que a verdade é um pôr para fora, então, apoderando-se de todas as coisas para torná-las manifestas, ela as lança propriamente fora de si a cada instante. Este pôr para fora de si não significa em absoluto uma simples transferência da coisa de um lugar para outro como se, em tal deslocamento, ela permanecesse semelhante a si mesma, recebendo no máximo essa propriedade nova de se mostrar. Vir a aparecer no “fora de si” do mundo significa antes que é a própria coisa que se encontra lançada fora de si, fraturada, quebrada, cindida de si, despojada de sua realidade própria, de maneira que, [30] privada doravante dessa realidade que era a sua, esvaziada de sua carne, ela não está mais fora de si mesma, na Imagem do mundo, do que seus próprios despojos, uma simples imagem, com efeito, película transparente, superfície sem espessura, pano de exterioridade nu oferecido a um olhar que desliza sobre ele sem poder penetrá-lo nem atingir outra coisa além de uma aparência vazia. MHSV I
Esta vinda ao aparecer como vinda ao mundo que, segundo a fenomenologia, devia conferir o ser a tudo o que se mostra, eis que lho retira, fazendo desse ser seu contrário, uma espécie de nada de si mesmo, privando cada coisa de sua substância para no-la entregar, mas em forma de um aparecimento estranho à realidade e antes de tudo a essa realidade que devia ser a sua e que ela só pode fazer ver destruindo-a. Esse fazer ver que destrói, que consiste no aniquilamento de tudo o que ele exibe, não o deixando subsistir senão com o aspecto de um aparecimento vazio, é o tempo. O tempo é a passagem, o deslizamento em forma de deslizamento para o nada. Mas o tempo não é esse aniquilamento incessante por efeito de uma propriedade que deveríamos sofrer sem compreender, ao modo de uma fatalidade misteriosa. E porque a vinda à aparência é aqui a vinda lá fora que, lançando cada coisa fora de si e arrancando-a de si mesma, ela o precipita no nada. E a maneira de fazer aparecer enquanto extrai sua essência do “fora de si” que é o aniquilamento. Como o tempo passa! Já chegou o outono! Meu candeeiro já se apagou! Mas o tempo não é verdadeiramente um deslizamento do presente para o passado, segundo análises célebres que se unem ao senso comum. No tempo não há presente, nunca houve e nunca haverá. No tempo as coisas veem à aparência, mas, na medida em que este aparecimento consiste na ida ao lá fora, as coisas não surgem na luz desse “fora” senão arrancadas de si mesmas, esvaziadas de seu ser, já mortas. E porque seu poder de tornar manifesto reside no “fora de si” que o tempo aniquila tudo o que ele exibe. Mas o modo de tornar manifesto do tempo é o do mundo. E o modo de fazer ver do mundo, é a VERDADE DO MUNDO que destrói. [31] MHSV I
A “VERDADE DO MUNDO” não designa, pois, nenhum julgamento feito do alto a respeito do mundo e de tudo o que se mostra nele, a respeito do curso das coisas. Porque a VERDADE DO MUNDO é sua maneira de fazer aparecer cada coisa, ela habita esta como seu modo de aparecer precisamente e de se perfilar em nossa experiência, de se dar a nós e de nos tocar. A VERDADE DO MUNDO é a lei do aparecimento das coisas. Segundo esta lei, dando-se as coisas fora de si mesmas, despojando-se de si mesmas, esvaziando-se de si mesmas em seu próprio aparecimento, não dão nunca sua própria realidade, mas somente a imagem dessa realidade que se aniquila no momento em que elas se dão. Elas se dão de tal modo que seu aparecimento é seu desaparecimento, o aniquilamento incessante de sua realidade na imagem desta. Eis porque não há presente no tempo: porque essa vinda ao aparecimento que define o próprio presente enquanto presente fenomenológico, enquanto apresentação da coisa, destrói a realidade dessa coisa nessa própria apresentação, fazendo dela um presente-imagem homogêneo tanto à imagem do futuro quanto à imagem do passado. A vinda ao presente como vinda de um futuro que desliza para o passado não é, assim, nada além da modalização de um Imaginário – essa modalização da imagem do mundo que é o próprio tempo enquanto tempo do mundo, enquanto esse desdobramento do “fora de si” que é a VERDADE DO MUNDO. MHSV I
Dizíamos que a VERDADE DO MUNDO é indiferente ao que ela ilumina: nuvens, rostos, sorrisos, manuscritos, acontecimentos de uma história. Do aparecimento do mundo, com efeito, nunca se pode deduzir o que aparece a cada vez nele. Mas o aparecer no mundo confere a tudo o que desse modo aparece o ser lançado fora de si, esvaziado de sua realidade, reduzido a uma imagem – uma vez que é este modo de ser lançado fora de si o que constitui aqui o aparecimento como tal. Tudo o que aparece no mundo é submetido a um processo de desrealização principial, o qual não marca a passagem de um estado primitivo de realidade à abolição desse estado, mas coloca a priori tudo que desse modo aparece num estado de irrealidade [32] original. Não há inicialmente uma coisa que estivesse presente e que depois, a seguir, passasse. Desde o início esta coisa passava. Quando ela ainda não era senão futuro, já atravessava as fases sucessivas desta existência futura; através delas, sem fazer parada no presente, ela se propulsava para seu nada no passado. Em nenhum momento ela cessou de ser esse nada. Se tudo nos aparecesse desse modo, se não existisse outra verdade além da do mundo, não haveria realidade em parte alguma, mas somente, em todas as partes, a morte. Destruição e morte não são obra do tempo a exercer-se posteriormente sobre alguma realidade preexistente a seu golpe; elas atingem a priori tudo o que aparece no tempo, como a própria lei de seu aparecimento – tudo o que se mostra na VERDADE DO MUNDO, como a lei mesma desta verdade. É esta conexão essencial que liga destruição e morte ao próprio aparecimento do mundo, ao que ele chama sua figura, que tem em vista o Apóstolo neste resumo fulgurante: “Pois passa a figura deste mundo” (1 Coríntios 7,31). Toda forma de verdade, salvo a verdade do cristianismo. É a ela que se trata de elucidar e de compreender agora, em sua estranheza radical com respeito a tudo a que o senso comum, a filosofia ou a ciência chamam e continuam a chamar “verdade”. [33] MHSV I