Romano Guardini — Os Trabalhadores da Vinha (Mt XX, 1-16)
A parábola foi provavelmente contada a partir dum incidente preciso. Talvez Jesus tivesse encontrado um homem que Lhe pareceu duvidoso, no qual Ele viu boa vontade, que atraiu a Si, o que escandalizou os «justos».
Era talvez Zaqueu, que, como todos os arrecadadores de impostos, era tido por traidor do povo, e a parábola seria a resposta à indignação levantada pela sua conversão.
Uma ocasião semelhante sugeriu, sem dúvida, a parábola dos trabalhadores da vinha (Mat., 20, 1-15). O dono da vinha dirige-se uma manhã ao sítio onde se encontram os desempregados à espera de trabalho, toma-os ao seu serviço e combina com eles um salário diário de um dinheiro. No decorrer do dia, passa várias vezes pelo mesmo sítio, contrata os desocupados e promete-Lhes um salário conveniente. Ao cair da tarde faz as suas contas e dá um dinheiro aos que chegaram por último. Vendo isto, os primeiros esperam receber mais, ficam decepcionados ao receber só um dinheiro e queixam-se. Então o dono da vinha diz a um dos que tinha falado: «Amigo, eu não te faço injustiça; não convieste tu comigo num dinheiro? Toma o que te é devido e vai-te embora; que eu por mim quero dar a este último o mesmo que a ti. Visto isso, não me é lícito fazer o que quero? Acaso o teu olho é mau porque eu sou bom?» (Mat., 20, 13-15).
A nossa primeira reação é outra vez esta: Esta gente tem razão! Talvez não perante a lei, visto que recebem o salário combinado, mas perante a justiça. Porque se aqueles que trabalharam pouco tempo, obtêm também um dinheiro a parte deles fica depreciada. A resposta dada pelo dono às suas reclamações não satisfaz de modo nenhum. Pelo contrário, ela provoca a revolta: «Não posso fazer com o meu dinheiro o que me agrada?» Não, não o podes. Há uma lei à qual o teu dinheiro e o teu poder estão submetidos, é a lei da justiça. Tu e os teus bens estão submetidos a ela. Em nome dela apelamos contra ti!… E todavia o essencial da parábola reside nestas palavras do dono. Só poderemos avançar, se virmos que Deus é esse dono. Então a parábola quer dizer: Aquele que distribui trabalho e salário, que fixa o destino de cada um, o Senhor da vida, é Deus. Ele é o Criador, o Todo-Poderoso, o Primeiro. Tudo é d’Ele. Nada está acima d’Ele. O que Ele decide é o que é válido. O nosso coração está de acordo? Não. Também de Deus nós exigimos justiça. Em relação a Ele também, fazemos apelo àquilo que é válido perante a justiça, contra aquilo que o seu poder determina. Este apelo não é ímpio. A Sagrada Escritura dedica um livro inteiro à auto-afirmação, perante Deus, desse sentimento de justiça: é o livro de Job. Este sabe que não pecou — pelo menos ao ponto de merecer verdadeiramente a sorte que lhe foi destinada. Ele não pode deixar de ver nisso uma injustiça contra si. Os amigos de Job fazem-se advogados da justiça: ele pecou forçosamente, pois que a forma particular do seu destino se não explicaria sem isso. Mas ao fim da longa conversa eles são reduzidos ao silêncio pelo próprio Deus. O senhor ergue-Se então diante de Job, envolto no seu mistério vivo, e toda a oposição desaparece…
O que significa isto? Só apelamos do poder de Deus para a justiça; só nos recusamos a considerar como justa uma coisa pela simples razão de que Deus a quer, enquanto não tivermos apreendido por um contato vivo quem é Deus. Desde o momento em que Deus nos revela, um pouco que seja, a realidade do seu ser sagrado, esta oposição fica sem objeto, porque tudo tem a sua origem em Deus. A «justiça» não é uma lei, que dominaria tudo, incluindo Deus; mas o próprio Deus é o que é a justiça. Logo que a consideramos em si mesma, descobrimos nela, por assim dizer, uma cristalização da essência viva de Deus. Ela não é pois uma plataforma independente, na qual o homem poderia afirmar-se em face de Deus. Aquele que se coloca sobre ela está em Deus e deve aprender d’Ele, que é mais que justiça, o que significa a justiça viva.
É impossível demonstrar isto por intermédio de conceitos. Que Deus «tenha o direito de fazer com o seu dinheiro aquilo que quer» — não só «possa» mas «tenha o direito»; que isso seja justo, absolutamente justo e justo em si, quaisquer que sejam as objeções do coração humano e da razão humana, — sim, que o direito comece apenas com a vontade de Deus, não seja mais que o testemunho desta vontade soberana, — nada disto se pode conceber, apenas pode ser apreendido na medida em que nos aproximamos d’Ele. Deus é Aquele em quem isto é assim.
Este conjunto é um mistério de bondade. A parábola tem o seu ponto culminante nas palavras: «o teu olho é mau porque eu sou bom?». A liberdade divina, a soberania absoluta das suas decisões, o fato de nada haver acima d’Ele para que se possa apelar — neste conjunto é bondade, amor. O Novo Testamento tem um nome para esta realidade: é a Graça. O homem é exortado a não se fechar na justiça, mas sim a abrir-se à bondade divina, aos pensamentos e às ações que a exprimem; entregar-se à Graça, superior % justiça e aí tornar-se livre.
Acontece aqui qualquer coisa de estranho: ao homem que invoca a justiça é dito que, em verdade, ele é «cobiçoso». Convenhamos que é forte, quando se sofreu injustiça e se reclama, ouvir dizer que se é cobiçoso! Em vez de ver reconhecida a intangibilidade do direito, ver qualificados de inferiores os seus próprios motivos de intervenção! Mas se vemos na Escritura a Palavra de Deus, recolhemos o ensinamento de que, no momento em que invocamos o valor mais irrepreensível, o mais claro «porquê» — nomeadamente quando nomeamos a «justiça» — esta é, na maioria das vezes, e talvez sempre, o disfarce sob o qual se escondem motivos bem diferentes.
A justiça dos homens, desta maneira o aprendemos, é uma coisa muito duvidosa. Devem aproximar-se progressivamente dela mas sem nela se firmarem. Talvez exprimamos o cerne do Novo Testamento dizendo que a verdadeira justiça não está no começo mas no fim, enquanto esta outra justiça da qual se faz o fundamento da moralidade é uma coisa equívoca. A verdadeira justiça é um fruto da bondade. O homem só é capaz de exercer a justiça depois de haver aprendido pelo amor divino a olhar os homens, e a si próprio, como eles são realmente. É preciso aprender a amar para poder ser justo.