OS TRAÇADOS DE LUZ (tradução Antonio Carneiro)
Não devemos ver uma teofania do Shadai nessas três vezes quatorze gerações que vão de Abraão ao Cristo segundo o Evangelho de Mateus? Teofania que simboliza a « Terra prometida » descoberta pelos israelitas após três vezes quatorze estações no deserto, após Moisés. Remeteremos para esta exegese à 27ª homilia sobre os Números de Orígenes. Poder-se-á sem dúvida julgar pueril e pouquíssimo segundo a hermenêutica judaica cristã a aproximação que estabelecemos assim entre a genealogia de Jesus e os números constitutivos de Schadai, dispostos deste modo. Entretanto, faremos observar que a tradição judaica não hesita em usar do mesmo modo tanto a propósito das três palavras de quatorze letras do « Schema Israel »: “Adonai Elohenou Adonai”, nos quais vê o “schin” de valor 3 ou 300, e o “dai” de valor 14 (cf. « Zohar » III 243 b/230 b/231 a) e o número do Metatron « vestimenta de Schadai », quanto à propósito da disposição dos laços e caixas dos filactérios.
A questão das duas genealogias do Cristo apresenta algumas dificuldades cuja solução conduz a notas interessantes. Pode-se afirmar que Mateus apresenta a genealogia “legal” e Lucas a genealogia “natural”. Sendo a primeira referente a São José a segunda a Maria. Embora aparentemente se refiram ambas a José, não se deve esquecer que José e Maria seriam primos, e com certas considerações levando em conta que entre os nomes citados Heli, Heliakim e Joaquim (pai de Maria), seriam sinônimos.
Ambas as genealogia tem Davi como ponto de referência comum por uma série diferente de nomes, o que confirmaria a proposição de uma genealogia legal e outra natural. Assim os evangelistas dariam a genealogia de Jesus sob dois aspectos diferentes, apresentando-o como herdeiro de Davi não somente legal, mas natural. Mas do ponto de vista teológico as duas exprimem a sua maneira o dogma das duas naturezas do Cristo: a natureza divina e a natureza humana, unidas na Pessoa do Verbo. A genealogia legal corresponde à natureza divina posto que parte de Abraão, pai do Povo eleito, e se situa por consequência na ordem da Graça. Enquanto isso a genealogia natural remonta a Adão e se situa na ordem natural.
EU SOU A VERDADE [MHSV]
A esta genealogia de Jesus que ocupa o lugar inicial no texto dos Evangelhos de Mateus e Lucas, há uma ratificação imediata que se segue, muito pouco notada. Não é São José, tanto em Mateus quanto em Lucas, que é o pai do Cristo. Estranha genealogia que só é exposta para ser refutada em seguida. E a condição da Virgem que tanto embaraçou os teólogos, a ponto deles não verem outra solução a este embaraço que a formulação de um artigo de fé — este artigo portanto não poderia de maneira alguma significar a manutenção oblíqua e a reafirmação da genealogia humana de Jesus, se é verdade que a Virgem só deve portar o Filho pela intervenção do Espírito Santo, quer dizer de Deus. Que ela seja objeto de embaraço da parte dos crentes, de ironia da parte do incrédulos, a afirmação da virgindade de Maria oculta mal, atrás de seu conteúdo aparentemente absurdo, a tese essencial do cristianismo, a saber: nenhum homem não é filho de um homem, e menos ainda de uma mulher, mas somente de Deus.
A genealogia humana do Cristo não é tal, tão modesta ou tão insignificante, que possa ser descartada com um abano de mão. Aí não se encontra, ao lado do último nomeado, um humilde carpinteiro que não é justamente o pai de Jesus, ancestrais prestigiosos, profetas e mais que profetas, fundadores da religião na qual Jesus foi formado: Davi, Abraão, para não citá-los apenas? O que é estupeficante então e não poderia de deixar de aparecer como tal às religiões de seu tempo, é ver o Cristo empreender deliberadamente de se comparar a estas colunas, poderia se dizer, do judaísmo. E isso a fim de mostrar sem equívoco a infinita superioridade de sua própria essência sobre a sua: sua condição de Arque-Filho precisamente no sentido que dissemos, ou seja sua igualdade com Deus.
Textos terríveis e magníficos confirmam a rejeição de toda genealogia humana do Cristo assim como o conjunto de relações fundadas sobre ela não pode se compreender sem um retorno a seu princípio posto a nu. «Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?» E estendendo a mão para os discípulos, disse: «Eis minha mãe e meus irmãos. Pois quem quer que faça a vontade de meu Pai que está nos céus, é ele que é meu irmão e minha irmã e minha mãe» (Mt 12, 48-50). A subversão da ordem humana fundada sobre a genealogia humana é total, remetendo não menos evidentemente a uma outra ordem, àquela da genealogia verdadeira: «Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; E assim os inimigos do homem serão os seus familiares. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim. (Mt 10:34-38). Sob o caráter em aparência ético destas prescrições se afirma uma fenomenologia: é porque o pai humano, com a constelação das relações construídas ao redor dele, não é ele mesmo senão aparente e fracassa. Mas o pai humano não é um pai aparente senão porque é um pai mundano: é porque a vida não se mostra no mundo que nenhuma geração aí não se produz e que no mundo nenhum pai não é nele um, não mais que nenhum filho.
Meditações Tarô
Outro exemplo do simbolismo da espiral, enquanto arcano do crescimento, é a preparação da vinda de Cristo na história. O Evangelho segundo Mateus faz dela uma espécie de genealogia de Jesus, resumida numa única frase:
“De Abraão até Davi, quatorze gerações; de Davi até o exílio na Babilônia, catorze gerações; e do exílio na Babilônia até Cristo, quatorze gerações (Mt 1,17).
Eis aí a espiral da história da preparação da vinda de Cristo, espiral de três círculos ou “passos”, cada um de catorze gerações. O primeiro círculo ou “passo” da espiral é aquele no qual a tríplice impressão dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó — impressão do alto, correspondente ao sacramento do batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — tornou possível a revelação e a aliança do monte Sinai e chegou ao estado em que a Lei se tornou alma numa pessoa humana, a de Davi. Porque foi em Davi que os mandamentos e as ordenações da Lei revelada “com trovões, relâmpagos e uma espessa nuvem sobre a montanha . . . ao povo amedrontado”, se interiorizaram ao ponto de se tornarem amor e consciência, coisas do coração atraído pela verdade e beleza deles. Em Davi a Lei se tornou alma: por isso, também as suas transgressões deram lugar, na alma, a uma força nova, a penitência interior.
O primeiro “passo” da espiral, as catorze gerações de Abraão até Davi, corresponde, pois, ao processo de interiorização, que se verificou desde o sacramento do batismo (os três patriarcas), passando pelo sacramento da confirmação (a Aliança no deserto do Sinai), até o sacramento da penitência.
O segundo círculo ou “passo” da espiral, as catorze gerações de Davi até a deportação para Babilônia, é a escola de Davi, a escola da penitência interior, a qual alcançou seu fim exterior, a expiação, a deportação para Babilônia.
O terceiro círculo ou “passo” da espiral, as catorze gerações da deportação em Babilônia até Cristo, corresponde ao que se passa espiritualmente entre o último ato do sacramento da penitência — a absolvição — e o sacramento da Sagrada Comunhão ou Eucaristia, o da presença e recepção de Cristo.