Atos de Tomé

Escritos GnósticosATOS DE TOMÉ


Manuel João Ramos: Excertos de “Ensaios de Mitologia Cristã”

A oposição entre «aparência» apenas exterior e «imagem» simultaneamente interior e exterior, sendo central nos textos apócrifos de inspiração teológica gnóstica, encontra numa obra diretamente relacionada com o apóstolo dos Logia, os referidos Atos de Tomé, uma ilustração que merece algum destaque já que aqui, e nomeadamente no Hino da Pérola, esta temática de sabor gnóstico é expressamente articulada com as ideias de «invólucro» e «indumentária» que caraterizam o personagem central, o «filho do Rei». Já no Evangelho, Tomé surge individualizado como o discípulo de Cristo com quem este mantém uma relação preferencial: no Logion 13, não aceita que Tomé o trate por «Senhor» e transmite-lhe, em exclusivo, conhecimentos secretos 1. Esta associação especial é explorada nos Atos de Tomé, de forma consentânea com a valorização que o cristianismo copta siríaco faz da figura do apóstolo evangelizador do Oriente, tomado como santo patrono da cidade de Edessa. Tomé, designado nos Atos, de forma significativa, como Judas Tomé Dídimo, ou seja, Judas Tomé, o gêmeo de Cristo, é caraterizado como sua figuração intermutável, e como ele «estranho» a este mundo: Jesus aparece sob a forma de Tomé, e vice-versa (§.11 e §.45 da versão síria, in: Klijn, 1962); são «irmãos» e «co-iniciados» (§.12); ele é o «gêmeo de Cristo» que «participa dos santos mistérios de Deus», e de quem recebeu «as suas palavras secretas» (§.34); Nos diversos confrontos entre Tomé e o Diabo, o qual surge sob o disfarce de uma «serpente negra», de uma «mulher possuída» ou de «velho negro», o apóstolo desmascara-o e afugenta-o, sendo por este definido como a aparência terrestre de Jesus Cristo e, como este, «destruidor da raça» dos demônios. Em várias ocasiões é, por aqueles que recusam a conversão, suspeito e acusado de praticar «fraudes», «feitiçaria», e «encantamentos mágicos» sobre aqueles que se dispõem a segui-lo. No §.45, o Diabo acusa Tomé de agir como Jesus: «porque és igual a Deus, teu Senhor, que disfarçou a sua majestade e surgiu como carne, e nós julgamos poder olhá-lo como a um mortal mas (…) quando pensamos que o podíamos ter sob o nosso poder, ele voltou-se (contra nós) e lançou-nos no abismo; porque não o conhecíamos, porque ele nos enganou com o seu aspecto humilde» (Klijn, 1962:88).

Estes dois aspectos, a tendência para a indistinção entre a natureza de Tomé e a de Jesus Cristo, tanto física como espiritualmente (os dois são «estranhos» a este mundo), e a ambiguidade que marca a ação do apóstolo — com evidentes paralelos com o comportamento, já analisado atrás, de certas espécies animais associadas a Cristo ou ao combate a ofídeos —, definem o quadro teológico no qual surgem descritos os «atos» de Tomé, isto é, a sua missão apostólica no mundo oriental, e especificamente, na «Índia».
*ANÁLISE DOS ATOS DE TOMÉ
*O CARÁTER DE TOMÉ


  1. Cfr. os logia 13 e 108; o diálogo inicial do logion 13 é aproximável da passagem canônica da chamada «confissão de Pedro».[]